quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Resenha: ABSALÃO, ABSALÃO!, de WILLIAM FAULKNER



     Hoje trago a resenha de um dos livros mais marcantes que já li, uma obra-prima absoluta, cheia de simbolismos e belas construções estruturais, rítmicas e poéticas. Foi um dos mais difíceis que já tive o prazer de encarar, mas, após virar a última página, me senti recompensado por ter conseguido compreender o panorama geral da história contada, porém pleno da consciência de que, para capturar os detalhes e o significado de toda a poesia que o texto encerra (em especial os capítulos narrados por Rosa Coldfield, poetisa ela mesma, e portanto, as partes mais expressivas, dolorosas e belas, e, talvez também por ter sido a única narradora que vivenciou parte da história do livro, não confiável), terei que fazer uma releitura em breve. Creio que não será um esforço em vão: os verdadeiros clássicos merecem esse tipo de atitude por parte de seus leitores. Este é um tipo de livro que numa revisão descortina muitos dos mistérios que rondam os personagens ao mesmo tempo que novos símbolos vão brotando de suas ruínas. Sim, é um livro extremamente simbólico, e no entanto, continua sendo muito difícil para mim interpretá-los devidamente.
   
     Para começar, precisamos de algumas notas biográficas a respeito do autor nos aspectos importantes para compreendermos a ambição de seu projeto. William Faulkner nasceu 30 anos após a Guerra da Secessão, quando o Sul dos Estados Unidos da América, de cultura escravocrata, autodenominado Estados Confederados da América, foi derrotado pelo Norte abolicionista liderado por Abraham Lincoln (quem já viu ...E o Vento Levou sabe do que estou falando). Com isso, Faulkner pôde observar, enquanto crescia, a ruína de muitas famílias aristocráticas pelo fim da mão de obra escrava. Seu ambiente natural serviu de laboratório para sua aguda percepção psicológica e para o aflorar da sensibilidade expressa em suas obras vindouras. Os conflitos em realidades decadentes podem trazer junto a si uma força matriz que impulsiona a criação de grandes obras para quem se permite aproveitar as oportunidades e enfrentar as fortes ondas opositoras, e Faulkner aproveitou-as muito bem, assim como Flannery O'Connor, Carson McCullers, Katherine Anne Porter e Eudora Welty também o fizeram e como tantos autores sulistas ainda hoje o fazem, explorando alguns temas em comum, como o preconceito racial intransigente que mora nos poros brancos naquelas bandas (que permitiu a criação da Ku Klux Klan, cuja força persistiu por tanto tempo), os quais foram taxados, creio que indevidamente (sempre tenho problemas com taxações), de estilo gótico sulista, pois na verdade só o que há é uma confluência temática, sendo os estilos literários os mais variados. Com o objetivo de reconstruir à sua própria maneira essa realidade decadente do Sul dos Estados Unidos, Faulkner criou um condado fictício chamado Yoknapatawpha (que significa Terra Dividida no idioma indígena Chickasaw), no Norte do Estado do Mississipi, sendo Jefferson sua principal cidade. Segundo vários estudiosos, Yoknapatawpha é inspirado no Condado de Lafayette, onde Faulkner viveu grande parte de sua vida, sendo Oxford sua principal cidade e modelo para Jefferson. Nesse condado imaginário o autor compôs a ação de grande parte de suas obras, algumas delas verdadeiras sinfonias literárias.
   
     Absalão, Absalão! é um crônica familiar que abarca a trajetória de Thomas Sutpen e de seus filhos, do apogeu até a derrocada de sua estirpe. São quatro os narradores do livro, cujos pontos de vistas de um mesmo fato ora se complementam, ora se contradizem: Rosa Coldfield, irmã de Ellen Coldfield (esposa de Sutpen e mãe de Henry e Judith) conta a Quentin Compson (personagem do livro mais famoso de Faulkner, O Som e a Fúria) sua visão da história; Quentin ouve de seu pai outros fatos relacionados (relato de segunda mão direto da narração do avô de Quentin); já Quentin debate com seu amigo da faculdade, Shreve, a respeito do que apreendeu daquilo tudo e criam juntos suas conclusões do quebra cabeça: quais teriam sido a motivação para Thomas Supten ter agido como agiu, expulsando os índios de suas terras e construindo a Vila Sutpen a base do escravagismo? De que aspectos de seu passado ele tentava fugir ao chegar em Yoknapatawpha, e como ele conseguiu tanto poder? Porque ele tinha tanta necessidade de procriar? (encarava seus descendentes como seu legado?) Quais os aspectos que rondam seu declínio e morte? Que motivo levou seu filho Henry a matar seu amigo Charles Bon, noivo de Judith, e quais foram as circunstâncias desse assassinato?

     Ao contar o livro dessa maneira, Faulkner cria muito mais do que uma sucessão de fatos. Na verdade, estes são expostos já no início, mas de maneira obscura. A obscuridade dá luz a mitos a respeito de qualquer coisa, e não demora muito para ares míticos rondem a história dos Sutpen, sendo salientados pela tragédia pessoal de cada um de seus membros, que assume uma grandeza poucas vezes vistas. Quantos mitos familiares você tem na sua família, no que diz respeito a seus avós e bisavós não mais presentes? O quão histórias, que poderiam ser apenas trivialidades discutidas sem nenhum propósito, engrandecem pela óptica do mistério e da ambiguidade? Assim, a partir desse clima, são narradas cenas belíssimas de uma verve dramática surpreendente, como os momentos de fome e invasões durante a guerra; os comentários de Bon a respeito da prostituição das mulheres negras; os (anti) diálogos de Bon e Henry são uma criação de gênio ("ele não poderia ter dito que..." + a fala dos personagens.).

     Faulkner emprega aqui a maravilhosa técnica do Fluxo de Consciência (também extensivamente explorada por Clarice Lispector) de uma maneira muito original e proficiente. As divagações de seus personagens flutuando no tempo e no espaço nunca soam gratuitas e estão inteiramente ligadas à narrativa, servindo para criar, junto com um senso de poesia impecável, uma atmosfera lírica e sombria ao mesmo tempo, erguendo, a partir de cinzas espalhadas pelo vento, edifícios inteiros e entremeando-os com a complexidade de suas bases, mas permitindo a entrada da luz do sol pelas suas janelas, apenas esperando que o momento dessas mesmas estruturas desabem sobre o solo, impedindo a luz de continuar a cruzar a janela, pois não mais existe: cinza e poeira novamente surgem dos destroços. Quem vai reconstituí-los?

     PS: A Editora Cosac & Naify finalmente relançou a obra numa belíssima edição, depois de mais de 20 anos. Achei que tinham desistido de relançar a obra completa de Faulkner depois do fracasso de vendas dos títulos até então lançados. Nem sempre os mestres são reconhecidos, infelizmente. Um Nobel valoriza a obra de um autor, mas não a torna necessariamente um sucesso de público. Faulkner escrevia para quem gosta de ser desafiado. Espero que William Faulkner seja mais valorizado no futuro, e que a nova edição sirva para isso. Já estou indo comprar a minha para fazer comparações entre as traduções.      

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Resenha: A TERRA INTEIRA E O CÉU INFINITO de Ruth Ozeki

   

     Tudo está conectado. Essa é uma ideia clichê explorada em vários meios artísticos, mas ao tratá-lo de um jeito tão simples, Ruth Ozeki brilha e inova ao enfocar a conexão quase mística que se forma entre o escritor e seu leitor. Assim, Ruth Ozeki (a personagem, não a autora, que é o autorretrato desta, ou seja, apenas uma representação da pessoa real, não a própria) se conecta a Naoko Yasutani, uma adolescente de 16 anos japonesa; a própria Naoko faz o mesmo com o seu tio avô Haruki, que tem o nome igual a de seu pai (o que é uma belíssima escolha da autora, pelos conflitos de consciência similares que ambos enfrentam, e que todos nós deveríamos enfrentar, pois a falta de ética cada vez mais toma conta desde cedo dos indivíduos em sua singularidade quanto reunidos em massa), este se conectando (e aparentemente enlouquecendo) com cabeças da filosofia mundial. Mas o livro é muito mais do que isso. Em suas páginas, A Terra Inteira e o Céu Infinito expõe temas urgentes e fundamentais em contrastes gritantes, por vezes de forma cortante e explícita, em outras ocasiões mais delicadamente, explorando uma diversidade de estados de espírito em seus personagens, que vão ao fim do túnel sem luz aparente até um vislumbre do que seja a iluminação que os budistas tanto almejam, mas que não se frustram caso não a atinja. No fim das contas, a maior conexão explorada por Ruth Ozeki é aquela que nós leitores temos para com seus personagens. Será a literatura capaz de mudar a vida de seus leitores?
     Duas histórias paralelas são traçadas inicialmente. A primeira diz respeito a Ruth, escritora americana filha de japoneses que num belo dia encontra nas areias da praia da ilha remota em que habita (Whaletown, Columbia Britânica, Canadá) um saco plástico cheio de cracas no interior do qual há uma lancheira da Hello Kitty; nela, descobre-se o livro Em Busca do Tempo Perdido (uma de minhas paixões literárias, aliás) de Marcel Proust, cujo miolo se revela, na verdade, uma narrativa de Naoko Yasutani, a adolescente japonesa mencionada no parágrafo anterior, surgindo a partir daí a dúvida inicial se de um diário ou ficção se trata (até que limite nossos diários se tornam ficções de nossas próprias vidas ao, além da narração de fatos, os ilustrarmos com metáforas pictográficas e explorarmos variadas figuras de linguagem, enriquecendo a matéria bruta com a habilidade particular no jogo das letras a desvendar nossos estilos? Até onde o fluxo da consciência reverencia o ser real que os cria no momento em que está acordado, concentrado na realização do ato de viver?). Através da leitura de Ruth e das notas de rodapé que ela desenvolve a respeito das páginas manuscritas da menina, acompanhamos a trajetória de uma jovem insegura, cheia de conflitos normais de sua idade, mas que encontra um ambiente hostil tanto no próprio lar como na escola. No seio de sua família, a hostilidade é devida ao clima de negação gerado por um pai suicida e uma mãe que sofre calada. É uma família disfuncional digna de figurar como estudo de caso num dos livros mais que repetitivos de Augusto Cury, para quem tudo no final das contas tem uma solução simples. Mas o livro torna claro que não há soluções simples: não é possível viver plenamente de acordo com as diversas variáveis de nossas existências, talvez não seja nem ao menos saudável ser bem adaptado a tudo que nos ronda, configurando apenas um paço para a submissão. Já a opressão da escola é devido ao tradicional (nada mais chocante do que utilizar tal adjetivo para caracterizar algo tão vil e covarde, mas, na linha de análise de Hannah Arendt, banalizado) bullying, físico e psicológico. Para a garota, só lhe resta o SUPAPAWA (leia o livro que vai entender) para enfrentar seus problemas, em contraposição a uma atitude simples de executar o suicídio pelo qual é friamente obcecada... Até que ela se conecta ao seu tio avô através de cartas e diários escritos por ele, o piloto camicaze morto para alimentar a catástrofe de uma derrota iminente numa guerra estúpida movida por egos patrióticos (nada há de mais inconsequente que alimentar fanaticamente o amor uma bandeira, independente do que ela simbolize, seja um time, uma pátria ou uma religião). A conexão que a ela faltava para começar a mudar sua vida, se permitindo antes de tudo mudar suas opiniões, amadurecendo seu ponto de vista (algo saudável que muita gente tem medo de fazer pelo simples ego de não quererem estar erradas, embora às vezes nem seja propriamente uma questão de certo ou errado).
     Por outro lado, Ruth tem que se conectar com seus amigos e vizinhos da ilha onde mora, pessoas em geral afeiçoadas à solidão, para desvendar os segredos que ela não é capaz de decifrar sozinha. No fim das contas, Naoko se tornou uma força motriz para a ação de fomentar laços de amizade e cooperação alheia. Ela não seria jamais incluída na lista das pessoas mais influentes da história, mas essa pequena influência na vida de um tão minúsculo número de pessoas já é uma vitória na vida. A sensação de uma vitória distinta da de um ego megalomaníaco. Às vezes eu me pergunto se minha existência será capaz de inspirar alguém, de trazer algo significativo para o mundo, se a minha curta existência neste mundo terá alguma relevância. Mas, prefiro não buscar uma resposta para estas dúvidas. Tenho apenas que viver.
     Não se pode esquecer de mencionar a velhinha Jiko, de 104 anos, a bisavó da adolescente que depois da morte do filho camicaze  refugiou-se como monja budista num templo com a finalidade de orar para que as pessoas encontrem o caminho do meio que define a iluminação espiritual da tradição budista (confesso que sou adepto de tal conceito, nada melhor do que evitar os extremismos). É a respeito dela que Nao resolve escrever em seu diário, mas falha, explanando apenas um breve perfil biográfico e a descrição da relação das duas. Muita coisa fica em aberto, e é louvável (e poético) que no fim do romance a menina admita o fracasso de sua empreitada e revele que possa vir a escrever a biografia em questão nas páginas em branco inseridas na carcaça do livro O Tempo Reencontrado, o último volume de Em Busca do Tempo Perdido (esta revelação por minha parte garanto que não prejudicará a fruição do livro). Você nunca teve um momento em que, ao relembrar o passado, reencontrou, dentro do coração daquele ser que um dia já foi você mas que já não o é pelas barreiras que o tempo impôs, mas que somente às lembranças é dado a faculdade de transpôr, respostas há muito esquecidas para os seus tormentos e angústias?
     A autora tem um grande domínio de sua narrativa, concatenando as narrações em primeira e terceira pessoas de maneira eficiente e elegante. O contraste entre a espontaneidade da linguagem de Naoko e o distanciamento no dia a dia de Ruth tem seu valor estético. Os contrastes são elementos importantes de nossas vidas em si. Uma vida boa é feita de altos e baixos, o que tem-se que fazer é encarar tal fato, não ter medo dos fracassos e se orgulhar das conquistas, por mínimas que sejam. Porém o que ocorre na maioria das vezes é o repúdio ao erro, evita-se comentar sobre ele, odeia-se quem o faz recordar de um momento tão inoportuno... no final  das contas este é o maior erro que se poderia cometer: esquecer do que não lhes convém, ainda que isto seja fatal. Nossa incapacidade em massa de tirarmos lições valiosas do passado é a nossa ruína. Quando Platão escreveu sobre Atlântida, a cidade perdida, contou algo a respeito do progresso ganancioso que precede o declínio catastrófico. Dessa lição certos políticos e empresários riem, debocham, se fecham às lições das histórias, e perseguem quem vai contra a corrente nociva que formam.
     Além de todos esses dilemas éticos e existenciais que permeiam o livro, há vários outros elementos que se encaixam de maneira orgânica às visões espirituais de Ruth Ozeki, como mecânica quântica, paradigmas físicos como O Gato de Schrodinger, entre outros. Nada é utilizado de maneira gratuita neste livro, o que é muito bom. Espero que curtam como eu curti. É um livro que eleva nossa consciência moral e emocional.

         

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Resenha: O MUNDO PÓS-ANIVERSÁRIO, de Lionel Shriver

     

     Uma vez, em meu aniversário de 16 anos (2005), quis comemorá-lo de uma maneira simples, passando o dia com minha melhor amiga naquela época, e por quem eu estava muito apaixonado. Ela também estava apaixonada por mim, mas a nossa timidez mútua para encarar os sentimentos nos custou muito. Nesse dia, ela tomou coragem e me convidou para que eu sentasse ao seu lado em um banco para podermos conversar mais intimamente. No entanto, eu não aproveitei a oportunidade de beijá-la; ao invés disso, não sabia o que dizer, estava muito nervoso e tentava disfarçar. Ainda me lembro do olhar de decepção  e constrangimento dela quando desistiu daquele momento e convidou-me para ir com ela ao apartamento, onde estavam seus familiares. Com o decorrer do tempo, nossas vidas tomaram rumos opostos e perdemos contato. Às vezes ainda penso nela, de maneira nostálgica. Pergunto-me: e se tivéssemos nos beijado? O que teria hoje o Gabriel dessa realidade alternativa de diferente do Gabriel que ora vos escreve? Seria a alternativa melhor que a realidade?  
     O Mundo Pós-Aniversário é o segundo livro que leio da autora Lionel Shriver. O primeiro foi para mim o já jovem clássico Precisamos Falar Sobre o Kevin (2003), em que ela analisava as questões mais espinhosas a respeito da maternidade com uma intensidade brutal mas delicada ao mesmo tempo. Igualmente neste livro, publicado em 2007, Lionel explora um outro tema extremamente humano a fundo: o casamento. Ainda não li o Dupla Falta, que é um outro livro a respeito de casamento escrito por ela, mas sei que os enfoques são diferentes. Dupla Falta retrata a respeito da competitividade dentro de um relacionamento, e sei que os personagens não são flores que se cheirem, pelo que andei lendo da resenha de amigos. O Mundo retrata, por sua vez, as imperfeições mais visíveis dos relacionamentos, não importa que caminho trilhemos em busca da felicidade: a realidade é sempre menos fantásticas que as nossas projeções idealizadas. Talvez seja justamente por idealizarmos nossa realidade que tendemos a imaginar como seria nossa vida se tivéssemos tomado certas decisões no passado, que, olhando em retrospecto, ilusiona a existência de uma felicidade plena em qualquer que seja o âmbito desejado, seja o profissional, seja o sentimental. Lionel já corta secamente nossas expectativas, esfregando na cara do leitor, já na abertura, um fato que tendemos a esquecer quando nos é conveniente: "ninguém é perfeito". Se ninguém é perfeito, o mundo também não o é, e os relacionamentos menos ainda. Onde quer que haja pessoas, há imperfeição, independente de qual seja o mundo alternativo que prefiramos nos apegar. Mas claro, é saudável imaginar um mundo perfeito em que tivéssemos tomado decisões corretas que proporcionariam consequências sempre benéficas para nós, desde que excluído qualquer resquício de sentimento de culpa por justamente não tê-las tomado. 
     Irina McGovern, uma ilustradora de livros infantis e protagonista do livro, se vê justamente nesse impasse. Morando junto com seu companheiro de longa data Lawrence Trainer -- analista do terrorismo mundial num instituto de estudos estratégicos, homem verdadeiramente culto, porém meticuloso, pouco sociável e que não sabe expressar muito bem seus sentimentos, sendo no entanto extremamente amoroso e leal a sua companheira -- Irina se sente tentada a beijar Ramsey Acton, um amigo do casal, jogador extremamente popular de sinuca, um homem charmoso e cheio de excentricidades, mas ainda assim, um bom homem a sua maneira. A partir de então, o romance se bifurca em duas realidades. Em uma delas, mostra-se as consequências dela ter cedido à tentação; na outra, mostra-se as consequências de não o ter feito. É mérito da ficção excluir a premissa de que uma versão é menos ou mais real do que a outra. Na verdade, não existe realidade na ficção, e sim, verossimilhança, o que não falta para as duas alternativas. Lionel é mais pé no chão que aqueles documentários pseudo-científicos sobre física quântica na abordagem dessa questão de alternativas paralelas (sem desmerecer a física quântica real e verdadeiramente científica). Sempre, nas duas alternativas, Irina se pergunta "e se tivesse feito o oposto do que fiz?", mostrando justamente a imperfeição de suas realidades. Ambas as alternativas trarão bençãos e sofrimentos diferentes, e em nenhum dos casos, há lugar para arrependimentos eternos e martirizantes.
     Lionel Shriver tem uma habilidade extraordinária para criar personagens complexos e limitados, e por isso mesmo, nos perturba pelo quanto temos de parecidos com eles (surpreendentemente tenho muitas sensações e pensamentos em comum com os três personagens principais). Seus personagens tridimensionais servem como espelho para seus leitores. Todos têm qualidades maravilhosas e defeitos assustadores (as vezes incomodamente repugnantes). Não somos assim? 
     Além dos personagens, tenho que falar da prosa da autora. Percebi algumas características marcantes dela, fazendo comparações com o Kevin. Por exemplo, ela estabelece muito bem as profissões de seus personagens, tirando daí cenas interessantes. Todos os personagens são fluentes no ramo profissional que escolheram para si, e as vezes eles não conseguem entrar na mesma sintonia por conta disso, sendo constrangedoramente incompreensíveis uns aos outros, embora sempre haja um esforço para reverter esta situação. Não sou muito fã de livros com muitos diálogos, isso porque geralmente os acho superficiais e antiliterários, mas bato palmas para os criados por Lionel, que tem uma fluidez invejável, conseguindo abordar sentimentos os mais variados de maneira nada superficial. É curioso como ela consegue criar tensão abordando temas tão diversos, como num determinado momento, em que há um diálogo em que se discute a respeito da história da sinuca e o movimento do IRA. A prosa é outro ponto chave. A autora é muito perspicaz em suas observações psicológicas a respeito dos sentimentos, e explora a natureza humana mais eficazmente que em Kevin, empregando tons que variam do ácido ao agridoce, sempre de maneira muito orgânica. Além disso, ela consegue manipular nossas opiniões com uma destreza única. Lionel não alisa nossa falta de consciência; antes, a esmaga com uma martelada poderosa.   
     Por outro lado, o livro também tem seus pontos fracos. Na verdade, são mais excessos que defeitos. Há um cem número de vezes em que Irina compara os sotaques norte-americano e britânico. Além disso, percebi ser uma tendência da autora situar suas histórias em momentos do passado, para que ela possa fazer comentários a respeito de alguns temas, como a morte da Princesa Diana, a traição de Bill Clinton a Hillary Clinton com a estagiária Monica Lewinsky, sua negação a respeito desse caso, a natureza conveniente desse casamento, a questão da ascensão do terrorismo, a queda do World Trade Center, etc. Não acho que Lionel não tenha feito comentários espirituosos a respeito desses vários temas, mas as vezes sinto que ela usa o passado para manter uma margem de segurança a respeito dos temas que aborda sem cometer grandes gafes. Parece-me meio covarde, como se ela tivesse receio de não ser capaz de abordar temas atuais com proficiência. No entanto, creio que é só minha impressão. A autora é colunista no jornal britânico The Guardian. Se ela de fato tem essas limitações, está só na cabeça dela. 
     Recomendo fortemente esse livro. Ele nos amadurece emocionalmente. A visão a respeito do amor nunca mais será a mesma. Nos trás muita humanidade e nos faz pensar nas nossas próprias limitações no que concerne aos relacionamentos amorosos. Um livro poderoso.                 
       

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Resenha do conto O GERÂNIO, de Flannery O'Connor

     

     Não há nada mais difícil que mudar a visão de mundo, opiniões deturpadas, sedimentadas durante décadas, na mente de um idoso, quando a necessidade de uma mudança de tal natureza se dê mais pelas mudanças, ao longo dos tempos, de valores éticos e sociais essenciais que regem o senso comum, que por qualquer outra coisa. Se levarmos em consideração isso, poderemos apreciar o conto O Gerânio em toda a sua ambiguidade moral. Trata-se da história do velho Dudley, um personagem pelo qual Flannery O’Connor magistralmente nos faz sentir simpatia por adentrarmos na mente melancólica de seu idoso protagonista, nos mostrando suas dificuldades de adaptação à cidade grande (Nova York, ele, que vem de uma realidade campestre do sul dos Estados Unidos), seus anseios, suas lembranças (qualquer objeto é um motivo para se lembrar de algo ou alguém de sua realidade anterior, como, por exemplo, uma simples planta, o gerânio do título, lembrar-lhe um menino com poliomielite, Grisby), as confusões mentais da velhice, para logo em seguida nos surpreender com o enorme preconceito que este guarda implacavelmente em seu cérebro. Entretanto, a sensação é que não o guarda no coração. Suas lembranças de Rabie, um negro do sul, que o ajudava em suas caçadas e pescaria, revelam certo carinho pelo amigo (que ele procura jamais o chamar de amigo, que isso seria indecente por ele ser negro) e saudade, apesar de ser uma saudade não declarada, não escancarada em palavras doces de saudade, mas apenas reveladas pelas lembranças de bons momentos.
     Assim, é assustador e surpreendente quando Flannery nos revela um parágrafo como este:

     Começou aos berros: “Você não foi criada assim! Não foi criada para viver junto com negros que pensam que são iguais a você. E depois ainda vem com essa, achando que vou me meter com alguém dessa raça? Você deve é estar maluca, pra chegar a cismar que estou querendo alguma coisa com eles” (...) Ele sabia que os americanos do Norte recebiam negros pela porta da frente e permitiam que se sentassem nos seus sofás, mas não sabia que sua própria filha, tão bem-criada como tinha sido, fosse capaz de viver com eles na porta ao lado – achando ainda por cima que ele perdera o juízo, que queria se misturar. Logo ele!

     Mas o que fazer com um preconceito tão enraizado na cultura sulista? Lembro claramente de outros livros que li, de negros criados de brancos sentindo preconceito com pessoas de sua própria cor. Assim, ao mesmo tempo que sentimos simpatia, como geralmente sentimos com os velhinhos, sentimos raiva pelo preconceito (graças a Deus, apesar de ainda existir muito racismo aqui no Brasil, não chegar aos níveis do sul dos Estados Unidos, ilustrado por organizações como Ku Klux Klan e pela segregação racial dos anos 1960 – e por isso é de se admirar o trabalho de Martin Luther King frente a essas adversidades).

     
     Esse conto nos revela que o ser humano é mais complexo que seus preconceitos. 

sábado, 19 de julho de 2014

REFLEXÕES SOBRE "ADMIRÁVEL MUNDO NOVO" de Audoux Huxley



   Imagine uma sociedade em que todos são felizes em seus trabalhos, e que, por não haver a inveja em relação a posição privilegiada dos superiores, ninguém se machuca com maus pensamentos, não se angustia (pois a sociedade não têm mais problemas com o que se preocupar), têm a humildade de não desejar mais do que aquilo que podem possuir, e portanto, não há roubos, não há violência, por consequência não há presídios a serem ocupados por prisioneiros, pois não mais existe o ato que separa uma pequena transgressão dos bons costumes vigentes - que não fazem mal a ninguém, não é? - de um crime propriamente dito; imagine uma sociedade limpa e higiênica, onde moléstias de todo tipo que se possa imaginar foram erradicadas ao longo dos anos; imagine uma sociedade em que o crescimento populacional está bem controlado, ou seja, não há mais que burlar a terceira lei de Newton para poder viver confortavelmente; imagine uma sociedade que não tem mais noção do que é solidão, melancolia, tristeza, depressão, e em que a perspectiva da morte não é mais capaz de afligir ninguém. Você acha que isso é um protótipo modelo de uma sociedade perfeita? Se sim, você precisa ler esse livro urgentemente. Mais necessitados ainda de sua leitura estão aqueles que adorariam viver nessa sociedade pelo simples fato de que se pode transar a vontade com quem quer que seja.



     Com bem diz a jacket da minha edição, o slogan COMUNIDADE, IDENTIDADE, ESTABILIDADE sustenta a trama social dessa obra, que se passa no futuro 632 depois de Ford (aquele dos automóveis, e que acabou por influenciar a "filosofia" da produção em massa, inicialmente dos automóveis, e posteriormente dos mais diversos produtos). Há que se abordar cada uma das partes do difundido slogan levando em consideração o contexto da trama. Pois bem, vamos lá.




    O que aconteceria se um grupo de pessoas extremamente inteligentes, com iguais capacidades intelectuais e práticas, habitassem uma ilha deserta e tivessem que construir uma nova civilização por conta própria? Passados anos, se nos fosse permitido acompanhar o desandar da experiência, no resultado desse processo civilizatório possivelmente veríamos, como vemos em todos os países e cidades, governantes e governados, líderes e subalternos, reis e comerciantes. Pois o fato é que não existe civilização sem as mais diversas camadas sociais (se todos fossem líderes de grandes empresas, quem cuidaria do saneamento básico tendo que enfrentar o cheiro de merda todos os dias?). Como por fim se determinou, nessa hipótese, tal quadro, se todos tinham as mesmas capacidades? Provavelmente através de brigas, de criação de facções, de intrigas e de brutal violência, associados ao grande esforço demandado para a criação de um Estado e suas instituições. Pois o fato é que numa sociedade assim, alguém que está por baixo mas tem plena convicção de suas capacidades não se contentaria em permanecer nessa posição por muito tempo, e consequentemente o ciclo de intrigas e dissimulação continuaria (claro, se há empreendedorismo, pode-se chegar ao topo da camada social independente de intrigas, na mas pura honestidade, mas vamos considerar, seria esse o padrão dominante no que concerne as atitudes humanas?)



     Há assim que se aplaudir essa sociedade futurística que nos é apresentada, não? Afinal, não há mais intrigas, nem violência, nem inveja. Existem líderes e subalternos, mas tudo é tão condicionado para o bem estar que ninguém está insatisfeito com a posição em que se encontra. A COMUNIDADE, assim, é dividida em várias castas, das mais superiores às mais inferiores, e seus integrantes estão felizes onde estão, pois foram condicionados para isso, e é assim que se mantém a ESTABILIDADE, através do condicionamento - uma vez eu li em algum livro de autoajuda que o cérebro é burro, e portanto, se você se sentir triste, sorria, mas um sorriso verdadeiro, que então o cérebro será CONDICIONADO a interpretar que você está feliz. Então me pergunto: seria a felicidade plena nociva? Devemos nos perguntar, antes de tudo, que tipo de felicidade é essa. Dependendo, pode-se determinar com afinco que a felicidade é não só nociva, mas é nociva por ser burra também.



     Falo da felicidade banal de livros de autoajuda e daqueles que só leem esse tipo de livro. A felicidade encontrada por meio das drogas alucinógenas. A felicidade por se poder comprar coisas além do poder de consumo (eu também sou burro: tenho o vício de comprar livros em excesso). A felicidade que, quando nasce, distorce a realidade, nos isola em nossa própria ignorância. Os agentes das verdadeiras mudanças políticas e sociais raramente tem esses comodismo e fuga, e ainda bem, pois senão estaríamos lascados. Felizmente há pessoas inconformadas no mundo, insatisfeitas com o sistema vigente. Durante esses protestos por conta das Jornadas de junho do ano passado e os decorrentes da  corrupção da Copa do Mundo da FIFA (porra nenhuma que é Copa do Brasil! Só quem levou a melhor foi a FIFA com a isenção de impostos), bem que o governo gostaria de soltar vapores de SOMA para acalentar os revoltosos, e já que não tem tal tecnologia, o substituto é certamente uma bala de borracha na bunda dos manifestantes e bombas de efeito moral.



     Pois o que garante a ESTABILIDADE dessa sociedade é o SOMA. Trata-se de uma droga alucinógena que não possui efeitos colaterais graves, sendo um instrumento do estado para acalentar os impulsos da personalidade, os anseios, a força do livre pensamento que existe dentro de nós, e cujo uso deliberado é preconizado por um ensino hipnopédico, a máquina do senso comum, e que tristemente, na realidade suscitada no livro, é imposta sistematicamente, numa espécie de regime mental. A questão do SOMA pode ser interpretada fazendo paralelos com o uso atual das drogas alucinógenas, e o alheamento de seus consumidores é um fato preocupante. Mas eu interpreto de outra maneira. O SOMA, junto com a HIPNOPEDIA, é na verdade uma alegoria a um sistema complexo e intrincado capaz de impossibilitar o contato de ideias realmente válidas e perigosas. Sabemos que no Brasil o público leitor é uma minoria absoluta (mas que, pelas estatísticas mais recentes fiquei surpreso ao ver que o número vem crescendo aos poucos), e, por muito tempo, o que era dito (e encoberto) na mídia se tornava uma verdade absoluta pela maior parte da população. A mídia (refiro-me a mídia de massas, capitalista por natureza, cuja única preocupação é alcançar um bom Ibope) se fez pão e circo. Esta mídia nos hipnotiza, nos faz esquecer de nossas vidas em detrimento de problemas mesquinhos e irreais das telenovelas (generalizo, mas óbvio que exceções existem para tudo). Esse desserviço em matéria de educação das grandes emissoras é uma das grandes responsáveis pelo declínio cultural da população; uma mídia que introjeta o senso comum, que mascara o que lhe compromete e o que poderia ser a força motriz de, se não uma revolta, um mal estar na boca do estômago. O que pode nascer desse mal estar é algo incerto, mas tenebroso. A mídia contribui para a manutenção dessa tirania disfarçada de democracia em que vivemos, desse conformismo pautado num prazer imposto goela abaixo do espectador. Que nem o SOMA. Visto que poderia-se dizer que a culpa é do povo que gosta  dessas porcarias e que dá audiência para as emissoras temos que observar que infelizmente hoje em dia essa questão é uma faca de dois gumes na hora de atribuir a culpa em alguém.

       
           Confesso que, por ser tão comentado e discutido ao longo de seus 82 anos de existência, esperava muito mais do livro. Não critico o âmbito das discussões que suscita, mas a forma narrativa que o autor escolheu para arquitetar seu texto e apresentar suas ideias (e o fato de, no final do livro, durante o fantástico debate entre O Selvagem e o Diretor, - que resume basicamente o que as ideias contidas no livro, portanto, não avancem as páginas, embora certamente será a única parte que me interessarei a reler no futuro - o diálogo ser apresentado de maneira tão mais clássica, e ganhando força por conta disso, me faz pensar que o livro é um tanto heterogêneo, e não sei dizer se isso é bom ou ruim exatamente) me pareceu meio solta, apressada e por vezes desnecessariamente confusa. Não sei, talvez tenha um problema sério com livros que não investem numa descrição mais elaborada dos sentimentos e pensamentos (tudo bem, eu entendo que o livro é futurista e etc, mas enfim, sinto falta de um pouco de fluxo de consciência que tanto admiro em meus autores prediletos, e ao invés de ficar citando a torto e a direita frases shekesperianas, O Selvagem poderia muito bem pensar pensar por si próprio). A despeito do debate já citado ser excelente, O Selvagem apresenta um conhecimento muito mais aprimorado do que a realidade permitiria que ele viesse a desenvolver. Ler Shakespeare não seria suficiente para aprimorar sua mente e lhe trazer o senso crítico que ele demonstra. Felizmente o autor reconheceu essa falha no prefácio que acompanha o volume (e que deveria ser um posfácio pelo número de spoilers por metro quadrado que possui). Enfim, o livro é muito, muito bom, mas, como diz o senso comum, nem tudo pode ser perfeito neste mundo (eu particularmente conheço obras de arte perfeitas em sua adequabilidade estética para o tema que investiga, mas são raros).
     
     Fico triste com toda a liberdade que temos e que pouco usufruímos. Odeio esse tipo de desperdício.




      

domingo, 13 de julho de 2014

Resenha: A ÁRVORE DOS DESEJOS, de William Faulkner



     William Faulkner é um dos escritores do século XX que mais admiro. A polifonia narrativa de seus romances é uma das técnicas literárias mais geniais já criadas, juntamente com o fluxo de consciência que ele tanto aprimorou em suas páginas, imprimindo um senso poético peculiar a histórias tão pungentes, viscerais e por vezes violentamente perturbadoras (me vem a cabeça principalmente Absalão, Absalão!), uma poesia decorrente das mais intrigantes reminiscências da memória e da pura imaginação. 
     
     No entanto, antes de Faulkner se tornar o escritor genial que se tornou, ele escreveu um livro infantil chamado A Árvore dos Desejos, no longínquo ano de 1926 (imediatamente depois de seu primeiro romance Paga de Soldado), mas que só foi publicado postumamente. É que ele o escreveu não com o intuito de publicação, mas simplesmente com a finalidade de presentear os filhos pequenos de seus amigos em seus aniversários. Achei uma excelente ideia, visto que hoje em dia, ao invés de se preparar algo com as próprias mãos, com o próprio engenho e destreza (ou a falta dela, mas que ao menos se poderia dizer, ante uma tentativa falha, que foi de coração com as melhores das intenções), é mais prático ir ao shopping e comprar algo que, no final das contas, alimentará as esperanças mimadas de no ano seguinte conseguirem algo ainda de maior valor monetário em detrimento do valor emocional que não seriam capazes de perceber de um presente feito pelo próprio ofertante! Será uma coisa que farei em breve também. Dane-se se não se apercebem dessas sutilezas emocionais, um dia se darão conta. 

     Assim, pelo estilo que Faulkner imprimiu em suas obras adultas, olhei com um misto de curiosidade, afinal é uma referência para mim, e de suspeita, visto que estava esperando algo no estilo dos contos de Sagas, de Strindberg, também único volume pretensamente infantil de um escritor intrincado, mas que possuem um certo hermetismo remanescentes de suas obras adultas, hermetismo este que me deixou desconcertado quando de sua leitura há 5 anos atrás (preciso relê-lo). Assim, esperava algum hermetismo da parte de Faulkner também neste pequeno livro. À curiosidade, no entanto, foi somada a fascinação que desmanchou as suspeitas restantes ao prosseguir da leitura, até completamente fragmentá-la e dissipá-la. 

     O fato é que de difícil o livro não tem nada. Além disso, não esperava tanto senso de humor (lembro-me, em Matilda, de Roald Danw, que a pequena leitora criticava bastante os livros infantis que não eram engraçados, como As Crônicas de Nárnia). Através de descrições imagéticas e fantásticas narradas num ritmo muito gostoso de se ler (não há hermetismo, mas há ainda a harmonia tão cara ao autor), além de uma dinâmica de diálogos quase teatrais e que é o elemento de maior graça do livro, a narrativa acompanha Dulcie (que menina fofa!), que, por conta de ter entrado na cama primeiro com o pé esquerdo e virado o travesseiro de lado, é surpreendida no dia seguinte, ao despertar, com um mundo cheio de possibilidades, em que tudo pode acontecer, estas tão mágicas palavras que nos encantam na infância, derivadas de singelos contos de fada. 

     Assim, Dulcie, junto com Dirkie (seu irmão pequeno), Geoge (seu vizinho) e Alice (sua babá), acompanham o garoto misterioso Maurice (de onde veio esse personagem? Ninguém sabe. Personagens obscuros também são uma marca registrada de Faulkner) seguem rumo em direção a árvore dos desejos do título, encontrando no caminho o velhinho Egbert, que diz ser um dos únicos a conhecer a árvore dos desejos. São os diálogos entre Alice e Egbert um dos elementos mais cômicos do livros, ainda que a força motriz de tal comicidade seja pautada em preconceitos por parte de Alice (o que pode levar alguns a rejeitarem a obra). O fato é que, para quem conhece a ficção adulta de Faulkner, o preconceito é um de seus temas prediletos, principalmente o racial. Isso me faz especular que o velho Egbert seja negro, e isto seja os motivos das implicâncias de Alice. E se uma de minhas outras especulações fosse verdade, a de que Alice, na posição de babá, isso no Sul dos Estados Unidos no início do século XX (não fica claro também se a obra se passa nessa localidade, mas levo em conta a maior parte de sua obra, podendo-se passar também no século XIX, antes da Guerra de Secessão, quem sabe? Só o próprio Faulkner poderia responder), sobretudo no imaginário Condado de Yoknapatawpha, também fosse negra, isto demonstraria um subtexto sociológico preocupante, em que as negras gentis criadas em contato com senhores brancos não se considerassem negras e sujugassem aqueles com sua mesma cor de pele. Mas claro, isto está além da obra infantil que ele criou. São meras especulações, tendo como base comparações que talvez sejam inadequadas.

     Não é o melhor livro infantil que já li, mas é muito bonito. Para quem gosta de livros com uma moral, o livro a possui também, como as fábulas antigas. Associada com a beleza da escrita de William Faulkner, o investimento

     Acabei por fazer uma resenha grande e talvez desnecessariamente racional para um pequeno livro infantil. Mas é um bom livrinho. A única coisa da edição da CosacNaify que não gostei foi que ele, apesar de ser um livro infantil, tem mais apelo de vendas ao público já conhecedor do autor. As ilustrações de Eloar Guazzelli que acompanham o texto são boas, mas pouco lúdicas para seu público alvo. Fora isso, é um bom livro.

     

          
        

quinta-feira, 12 de junho de 2014

GEN - PÉS DESCALÇOS (Keiji Nakazawa)

     

     Venho aqui hoje para recomendar o incrível mangá Gen - Pés Descalços, de Keiji Nakazawa. A obra é dividida em dez volumes, sendo que a Editora Conrad até o momento lançou até o sétimo em nosso país.
   
     E porque eu recomendo este mangá? Porque é uma obra que tem a capacidade de transmitir sentimentos e valores que diariamente vêm sendo cada vez mais ignorados. É uma obra que ensina a nos colocarmos no lugar dos outros, e assim, a nos emocionarmos e sentirmos compaixão verdadeira pelo sofrimento humano, além de sentirmos a alegria dos personagens quando eles conseguem algo de bom na vida diante do mais puro caos.

     E que caos seria esse? O caos de enfrentar a bomba de Hiroshima. O caos dos sobreviventes de encarar os efeitos da bomba, de enfrentar os preconceitos surgidos e difundidos pelas pessoas de cidades vizinhas, que não queriam se contaminar com o "veneno da bomba". O caos da miséria decorrida desse processo todo. O caos do complexo moral da sociedade.

     Guerra após guerra, suprimentos alimentares e outros tipos de recursos são tirados da população civil menos abastada para ser doada aos "bravos guerreiros", que, como robôs, não têm autonomia de pensamentos, são meros fantoches do governo sem se darem conta; pacifistas ativos são vistos como estorvos da sociedade; preconceitos são difundidos hipnoticamente, até se tornarem jargões populares e lugares comuns. Aqui no Brasil seria por acaso diferente? Em relação a essa Copa do Mundo, por exemplo, se pensou alguma vez em se deslocar e demolir algum imóvel das classes mais abastadas para a melhoria da infra-estrutura? (Esse é o tema do primeiro volume).

     O segundo volume retrata Gen e o que restou da sua família pela sobrevivência depois da bomba. Como ter bom senso diante do desastre? Imagine o exemplo de se estar morto de sede, ter água na sua frente e não poder bebê-la por conta de uma contaminação invisível.

     O terceiro volume retrata o senhor Seiji, que foi atingido pela bomba e foi pedir ajuda aos seus familiares, que assim o manteve em quarentena, isolado e carcomido pelos vermes. Gen é uma luz para este homem. Para mim este é o mais bonito de todos os volumes.

     Os demais volumes também são magníficos.           



     Como ir contra uma sociedade envenenada, manipulada. Lembro das palavras de Liev Tolstói em Guerra e Paz

     Os pensamentos que têm enormes consequências são sempre singulares. Minha ideia é que, se as pessoas corrompidas estão relacionadas entre si e constituem uma força, as honradas devem fazer o mesmo, pois é fácil. 

     Será que é tão fácil assim? Diante do sistema atual, em que as pessoas boas são obrigadas a serem corruptas no dia a dia por questão de sobrevivência, é cada vez mais difícil a união pela promoção da justiça e e pela honra (por exemplo, simplesmente não podemos correr o risco de sermos demitidos de nossos empregos por conta de atrasos, então, se necessário for, não estamos errados em furar a fila dos ônibus, em esmurrar os outros trabalhadores e estudantes que também têm seus horários a cumprir, não receamos atropelar criancinhas e idosos, e no fim das contas, quando estamos todos imprensados como sardinhas numa lata imunda, cada um de nós lava as próprias mãos. As pessoas que ficaram para trás, esperando pacientemente nas filas, deixaram de ser pessoas honradas; na verdade, não passam de manés: rimos e debochamos deles, soltamos língua, fazemos careta, lhes chamamos de otários. Eis algumas palavras fundamentais de Juli Zeh, autora de A Menina Sem Qualidades:

     Se nos limitarmos a lamentar e chorar o vazio surgido, a vida passará por cima dessas lacunas com suas longas pernas e construirá para si pontes de ilegalidade cujo material de construção chama-se pragmatismo. O problema não consiste no fato de homens gostarem de fazer coisas cruéis, mas sim da crueldade ser algo tão simples. E o que funciona bem e com sucesso hoje em dia é considerado bom. Portanto o pragmatismo subdivide homens e suas ideias segundo a sua capacidade funcional; ele faz com que todos se lancem uns sobre os outros, e coroa o vencedor como bom. Nisso, ele atende ao mais antigo e mais primitivo dos instintos: os instintos da selva. A natureza é pragmática; todos os animais são pragmáticos. O homem é só um animal onde suas ideias acabam. O pragmatismo substituiu tudo que no passado as grandes ideias poderiam nos oferecer.    



     Eis a lamentável realidade.) É disso de que se trata o complexo moral social. E é disso que se trata Gen - Descalços. Como manter a dignidade em meio ao desespero? Como ter sentimentos humanos como compaixão e piedade em um momento em que os instintos estão ávidos pela saciedade, e em que é difícil não se entrar em disputas por recursos extremamente escassos? 

     O complexo moral social é algo que merece ser estudado fortemente nas escolas, e eu indico plenamente Gen - Pés Descalços para essa finalidade, por ser fácil e rápido de ser lido, por ser impactante, triste e ao mesmo tempo engraçado. Se você é educador ou pai, conheça essa obra e a repasse a seus alunos e filhos adolescentes, a sociedade agradece. Pode ter certeza que este mangá vai engrandecer o caráter de quem o ler.

     OBS: Em 2001, a Conrad lançou uma versão resumida em 4 volumes, que é boa também, mas menos abrangente do que esta versão atual. 

  

     

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Pequenas possíveis sementes

     Hoje me chegou pelos correios o livro A Fera na Selva, do escritor Henry James. Sabe, é um livro fininho contendo o conto de James e um posfácio o elucidando escrito por Modesto Carone. Estava muito ansioso para ler esta obra por conta da indicação da bibliotecária Claire Scorzi, cujas opiniões a respeito de literatura, adquiridas ao longo de anos de vivência, na maior parte das vezes concordo e respeito. De modo que, ao ver o livro sobre a minha mesa de estudos, imediatamente comecei a me aventurar por suas palavras, e, tendo lido até agora apenas o primeiro capítulo, posso dizer que a primeira impressão é de que são palavras capciosas, capazes de nos levar a reflexões mais intensas e, para os corações mais fáceis de se emocionar, a uma lágrima pura e preciosa, não por que contenha tons de melodrama - não o contém - mas porque mais cedo ou mais tarde vivenciaremos - comigo já aconteceu -  a situação que os personagens John Marcher e May Bartram vivem, e que é captado com muita sensibilidade pelo escritor: depois de anos, encontrar uma pessoa da qual apenas temos uma lembrança vaga, mas que, na ocasião em que se travou contato, marcou o momento de algum modo e que logo em seguida se esvaiu; lembranças que se tornam poeira no espaço e tempo de nossas vivências particulares. 
     Esse texto de hoje não é uma resenha. Quero apenas apresentar um trecho que para mim já está entre os meus prediletos. Estou tendo o pressentimento de que esse livro vai acabar com meu coração.

     "Não haviam levado senão alguns minutos, no fim das contas, para colocar sobre a mesa, como num jogo de cartas, o que cada um tinha nas mãos; mas o que ficou claro foi que o baralho infelizmente não era perfeito - que o passado, por mais que fosse invocado, convidado, instigado, não lhes poderia dar, naturalmente, mais do que continha. O passado fizera com que se encontrassem - ela com vinte, ele com vinte e cinco anos; mas nada era mais estranho, pareciam dizer um ao outro, que o fato de não lhes ter dado um pouco mais. Olhavam um para o outro com o sentimento de uma ocasião perdida; a atual poderia ter sido muito melhor se a outra, tão remota no passado, numa terra estrangeira, não tivesse sido tão absurdamente escassa. Tudo somado, não havia aparentemente mais do que uma dúzia de pequenas coisas antigas ocorridas entre eles; trivialidades da juventude, frescores de ingenuidade, tolices da ignorância, pequenas possíveis sementes, mas enterradas muito fundo - fundo demais (não parecia?) para germinar tantos anos depois. Marcher disse a si mesmo que devia ter prestado algum serviço a ela - como salvá-la de um barco soçobrado, ou pelo menos recuperar seu estojo de toucador, surrupiado do seu cabriolé, nas ruas de Nápoles, por um ladrão armado de estilete. Ou teria sido bonito se ele tivesse ficado prostrado por uma febre, sozinho, em seu hotel, e ela tivesse cuidado dele, escrito a sua família,, garantido seu restabelecimento. Então sim, eles estariam de posse de alguma coisa da qual sua situação real parecia carecer. Fosse como fosse, porém, essa situação real se apresentava, de alguma forma, como boa demais para ser estragada; assim, eles ficaram reduzidos por alguns minutos a uma especulação impotente sobre o por que - já que conheciam aparentemente tantas pessoas em comum - seu reencontro tardara tanto a ocorrer. Eles não usavam o termo, mas sua demora minuto a minuto em se juntar aos outros era uma espécie de confissão de que eles não queriam que aquilo fosse um fracasso. As hipóteses que arriscavam para o fato de não se terem reencontrado só mostrava o quão pouco eles sabiam um do outro. Houve mesmo mesmo um momento em que Marcher sentiu uma nítida pontada. Era inútil fazer de conta que ela era uma velha amiga, pois faltava para isso qualquer elemento de comunhão, embora fosse como uma velha amiga que ele a achasse adequada para si. Possuía novos amigos em número suficiente - estava cercado deles, por exemplo, naquele mesmo momento, na outra casa; se ela fosse uma nova amiga, provavelmente ele não lhe teria dado tanta atenção. Teria gostado de inventar alguma coisa, atraí-la para fantasiar junto com ele que alguma passagem de tipo romântico ou crítico tinha de fato originalmente acontecido. Estava quase vasculhando na imaginação - como se lutasse contra o tempo - em busca de algo que servisse, e dizendo a si mesmo que, se nada aparecesse, aquele novo encontro iria simplesmente chegar ao fim. Eles iriam se separar, e dessa vez sem a perspectiva de uma segunda ou uma terceira chance."

     Esse texto ajuda a darmos maior valor aos momentos. Vivemos num mundo conturbado, agonizante, e consequentemente cada vez menos se plantam essas pequenas sementes, pois as pessoas não tem mais tempo para essas "trivialidades". Mas são justamente essas possíveis sementes e o fruto que delas poderemos vir a colher que nos humanizam, dignificam e enchem nossos corações de alegria. Vamos valorizar mais os diálogos que travamos, o silêncio compartilhado, a comunhão estabelecida. É triste virarmos poeira nas lembranças de alguém. 
     Lembro das primeiras páginas de  Em Busca do Tempo Perdido, em que Marcel Proust escreve:

     "Ouvia o silvo dos trens que, ora mais, ora menos afastado, e marcando as distâncias como o canto de um pássaro em uma floresta, descrevia-me a extensão do campo deserto, onde o viajante se apressa em direção à próxima parada: o caminho que ele segue vai lhe ficar gravado na lembrança com a excitação produzida pelos lugares novos, os atos inabituais, pelas recentes conversas e as despedidas trocadas à luz de lâmpada estranha que ainda o acompanham no silêncio da noite, e pela doçura próxima do regresso."

     Parece-se que já não há mais essa excitação, apenas a indiferença, na maior parte das pessoas. Precisamos resgatar a nossa capacidade de empatia, nossa necessidade de se encantar verdadeiramente com tudo aquilo que vivenciamos e que vale a pena. Com a mente fechada que estamos atualmente, as oportunidades surgem e não são aproveitadas como se deveria. No final das contas, só sobra o arrependimento. 

segunda-feira, 21 de abril de 2014

RESENHA: CONTOS DE VIRGINIA WOOLF - PARTE 1

     

     Ao se ler resenhas alheias de livros de contos, geralmente vejo uma abordagem genérica do que foi lido, a fim de sintetizar a experiência em poucas linhas. No entanto, os contos de Virginia Woolf são tão ricos em estilo e simbolismo, que decidi por resenhar o mais breve possível conto por conto, mas claro, dividindo-os entre várias postagens. Esta primeira dará conta dos primeiros cinco da escritora inglesa, todos de 1906.
   
     PRIMEIROS CONTOS:

     PHYLLIS E ROSAMOND (1906)

     Primeiro conto de Virginia Woolf, Phyllis e Rosamond é um trabalho dos mais simples da autora, o que é natural como primeiro trabalho, tendo em comum com os seus seguintes textos apenas o requinte estilístico, porém sem o hermetismo tão característico de grande parte de sua obra. Não achei genial, apesar de não deixar de ser bom, principalmente em sua abertura e na cena da conversa entre Phyllis e Sylvia.
     Algumas opções na história, na minha humilde opinião, não foram as mais acertadas: a impressão que tive é que Virginia quis seguir por um caminho e enveredou por outro; como ela não revisou seus primeiros cinco contos em nenhum momento de sua vida, eles ficaram como ficaram, sendo este o que mais sofreu pela falta de uma segunda olhada. Primeiramente, ela dá a entender que fará um "estudo de caso" sobre cinco irmãs: "São cinco filhas, todas mulheres, (...) duas irmãs se opõe a duas, e a quinta vacila uniformemente entre as duas." Se opõe por conta da natureza fútil de Phyllis e Rosamond em conflito silencioso com o espírito acadêmico das outras duas (que não têm o nome revelado, assim como a quinta filha). No entanto, o texto toma outra direção, apesar de claramente, em relação a sua temática, Virginia demonstrar exatidão na questão que pretendia abordar: as irmãs inominadas não interferem em nada na história, sendo só um detalhe insignificante; bem que poderia servir como um sub-texto, uma espécie de contraponto à visão que Phyllis e Rosamond têm em relação a si mesmas, a revelação do autoconhecimento que têm de sua mediocridade, mas todo esse efeito de espelho se dá por conta de Sylvia, uma pessoa estranha para as duas irmãs por, ser culta e refinada além das aparência, contrapondo suas personalidades fúteis. Phyllis e Rosamond bem poderiam se passar por personagens secundários de certos romances de Jane Austen (me vem à mente Lydia Bennett e sua mãe, de Orgulho e Preconceito, diferindo destas simplesmente pela autoconsciência, mas que possuem os mesmos valores fundamentais antiquados em relação a questão da mulher, do amor e do casamento). 
        A abertura do conto é bem interessante se levarmos em conta que quase imediatamente ela escreveria uma outra história curta, O Diário de Mistress Joan Martyn (resenhado abaixo) em que ela fala sobre a necessidade de se documentar a vida. O início caberia muito bem no referido conto, justamente por ele falar mais diretamente de resgate histórico. Eis o trecho.
     "Nesta época tão curiosa, quando já começamos a necessitar de retratos de pessoas, de suas mentes e sua indumentária, um contorno fiel, desenhado sem mestria, porém com honestidade, é bem capaz de ter algum valor.
     Que cada homem, ouvi dizer outro dia, ponha-se a anotar os detalhes de uma jornada de trabalho; a posteridade há de ficar tão contente com o catálogo quanto ficaríamos nós, se tivéssemos um tal registro de como o porteiro do Globe e o homem responsável pelos portões do Park passaram o sábado, 18 de março, do ano da graça de 1568."
     

     O MISTERIOSO CASO DE MISS V. 

     As três páginas que comportam este conto se revelaram bastante curiosas e ricas em simbolismo, revelando (ao menos para mim) três possibilidades de interpretação diferentes, de acordo com a maneira como encaramos a Miss V. da história. Afinal quem seria essa tão obscura Miss V.? Quem se aventurar a ler o conto perceberá que a referida personagem é tratada de duas maneiras diferentes: inicialmente por Janet V. e posteriormente de Mary V. São duas personagens diferentes? A autora narra as coisas de um modo que acreditemos que não, e tal intercambio de nomes é narrada da mesma maneira sem mais explicações, como no romance Orlando o protagonista, inicialmente homem, se converte em mulher. 
     Mas Virginia não facilita para seus leitores, criando, logo no início, palavras que ao mesmo tempo não parecem dizer nada, mas que servem como chaves para dar luz a uma nova interpretação: "uma história como a dela e a irmã - mas é típico que, ao se escrever sobre elas, um nome pareça instintivamente servir às duas". Ou seja, poderemos pensar que Mary e Janet, apesar de serem tratadas como uma só, são irmãs; além disso, podemos especular que a própria narradora do conto é Janet, visto que "um vínculo de sangue - ou do fluido que porventura circulasse nas veias de miss V. - fez com que meu destino particular fosse dar com ela". 
     Por outro lado, tal troca de nomes pode ser simplesmente pelo fato de miss V. ser tão isolada do mundo; a narradora, por falta de grande convivência, talvez tenha confundido o nome da referida senhora. Creio, porém, que esta interpretação é desprovida de verdade, servindo só para simplificar por pura preguiça mental uma história tão rica em possibilidades. 
     O conto tem como tema aquelas pessoas que, mantidas à parte dos círculos sociais, se tornam uma espécie de sombra. As vezes eu sinto que sou uma sombra para aqueles a quem não permito aproximação ao fundo de minha intimidade, um borrão na memória de amigos distantes; muitos seres de meu passado igualmente se tornaram sombras, que, dia após dia, se fragmentam em manchas disformes. No entanto, Virginia personifica o motivo sombra além das impressões da memória: "seguir os passos da sombra, ver onde é que ela vivia, se é que vivia mesmo, e conversar com ela como se fosse uma pessoa igual ao resto de nós!"; "... e eu já começava a me perguntar se as sombras morrem e como poderiam ser enterradas". 
      Eis um conto bem elaborado! Já li e reli inúmeras vezes e sempre aprecio a sutileza de Woolf, sempre capaz de me desafiar.

     O DIÁRIO DE MISTRESS JOAN MARTYN

     Aparentemente Virginia Woolf era apaixonada pelo resgate histórico, como já comentado, e esta paixão fica ilustrada evidentemente aqui. Inicialmente, temos a narração em primeira pessoa por miss Rosamond Merridew, uma historiadora que investiga o sistema de posses de terra na Inglaterra medieval, e que, em suas pesquisas, acaba por passar pela estrada de Thetford após uma expedição infrutífera na abadia de Caister, onde procurava documentos. Na referida região acaba por encontrar um pequeno solar medieval, habitado por descendentes dos donos originais. Lá, ela acaba por descobrir o diário do título, e então, as páginas restantes são as narrações de Misstress Joan Martyn, feitas no ano de 1480 (claro, tudo fictício). 
     Creio que a intenção da autora aqui foi mostrar a condição feminina na idade média, como era o universo monótono das mulheres de família, sua falta de liberdade para se poder escolher o próprio caminho, a visão de que a mulher é feita para o casamento e para os filhos (de novo esse tema). Ela utiliza de percepções simplórias, mas bastante intimistas, de Joan Martyn, para questionar os valores da época de Virginia no que se refere à mulher, visto que a situação feminina ainda fossem bastante similares em ambas as épocas, numa sociedade em que, como disse Leonardo Froés (tradutor deste livro) numa palestra, apesar de ter uma rainha, culturalmente era irritantemente masculinizante, onde autoras tinham que usar pseudônimos masculinos para serem valorizadas (Jane Austen, Emily Bronte e George Eliot, para citar algumas usaram desta tática para chamar a atenção).
     O estilo desse conto é incrivelmente simples, mas ainda assim tem a elegância de sempre de Virginia Woolf.

     UM DIÁLOGO NO MONTE PENTÉLICO 

     Tendo como local de ação o Monte Pentélico, situado a nordeste de Atenas, onde se encontra o Partenon, Virginia aqui destila ironia e acidez frente à prepotência inglesa de se acharem o dono do mundo, e de se proclamarem como aqueles a quem a cultura clássica certamente tem mais a dizer. O primeiro parágrafo ilustra bem todo o conto:
     "Aconteceu, e não há muitas semanas, que um grupo de turistas ingleses desceu a encosta do Pentélico. Eles porém teriam sido os primeiros a retificar esta frase e assinalar  o quanto de inexatidão e injustiça se continha nessa descrição de seu grupo. Porque chamar um homem de turista, quando o encontramos no exterior, é definir não apenas suas circunstâncias, mas também sua alma; e suas almas inglesas, teriam dito, não estavam sujeitas a limitações desse tipo. Os alemães são turistas e os franceses são turistas, mas os ingleses são gregos."
     Basicamente o texto foca nessa crítica ao "espírito acadêmico inglês", que, se consideram mais conhecedores da cultura grega antiga que os próprios gregos por vestirem roupas muito mais sofisticadas que as destes, além de acreditarem que os próprios gregos contemporâneos não são embutidos do antigo espírito clássico de seus antepassados. 
     O que chama a atenção é o diálogo do título, que é escrito de um modo muito pouco usual. Não há um personagem falando após o outro como vemos usualmente, mas sim diálogos entremeados a longas narrativas que se entremeiam com os mais diversos pontos de vista de não se sabe quem, pois, apesar de sabermos que são cinco personagens, a autora não os distingue, tornando os debates e rebates muito subjetivos, não procurando uma conclusão temática dos diálogos, mas sim, implantar perguntas e reflexões. Virginia não é uma autora de respostas simplórias. 
     Interessante é o comentário que ela faz no conto d'O Diário de Mistress Joan Martyn, que pode-se fazer um paralelo interessante ao presente conto: "se aplicássemos na escavação de nossas próprias ruínas uma ínfima parte do que gastamos anualmente para escavar cidades gregas, quantas coisas diferentes o historiador teria a contar."   
     Trata-se de um conto no mínimo muito interessante.

     MEMÓRIAS DE UMA ROMANCISTA 

     Este, junto com O Misterioso Caso de Miss V., foi o meu conto predileto até o momento. Aqui a narração brinca com o tema da escrita de uma biografia pelo fato dela questionar constantemente até onde os pontos de vista da biógrafa e seus artifícios literários afetariam a integridade dos fatos da vida da biografada. A narração do conto - que por consequência de sua estrutura mantém três pontos de vista que não só se cruzam, mas se intercomunicam e se complementam - é extremamente racional, analítica (e psicanalítica), parecendo querer se manter imparcial, mas que se permite em certos momentos uma mesclada prosa-poética sutil, e que por vezes toma um aspecto um tanto obscuro.
     O que chama a atenção são as personagens, miss Willatt (a biografada) e miss Linsett (a biógrafa). Ambas para mim pareceram possuir facetas da própria personalidade da escritora. O comentário sobre o suicídio, que Virginia acabaria por cometer quatro três décadas e meia mais tarde, além da personalidade e reflexões de miss Willatt, ganharam, em retrospecto, importância através dos tempos, na medida em que a própria intimidade de Woolf se tornou pública através de seus diários.
     O conto ainda possui interessantes reflexões sobre o ato da escrita, sobre a liberdade criadora, liberdade tal que só lhe foi permitida quando Virginia, junto com seu marido Leonard Woolf, fundou sua própria editora anos mais tarde, a Hogarth Press.
     Belíssimo!


     Virginia Woolf
     Contos Completos
     Tradução de Leonardo Froés
     Editora Cosac & Naify

    



     
      
   
   

   

sexta-feira, 11 de abril de 2014

RESENHA: FUN HOME e VOCÊ É MINHA MÃE? de Alison Bechdel


     

     Impossível falar de um livro sem mencionar o outro, apesar de que até o ano de 2012 Você é Minha Mãe? não havia sido publicado. Mas, agora que o foi, ao se reler Fun Home, de 2006, que já era um livro denso e poderoso independentemente, após a leitura da segunda graphic novel de Alison Bechdel esta acaba por enriquecer a análise do primeiro livro, assim como o inverso certamente ocorrerá para quem se arriscar a ler o album de 2012 antes do de 2006, pois, ao contrário do que a sobrecapa de Você é Minha Mãe? afirma, este não se trata exatamente de uma continuação do outro, sendo ambos, antes de tudo, obras de arte sobrepostas, intercaladas e interconectadas. Dizer que um é a continuação do outro é como dizer que a mãe é a continuação do pai, e isso não faz sentido nenhum, ao menos teoricamente, pois, a despeito de tudo, a mãe continua a vida, enquanto o pai induziu sua própria morte. Mas adianto-me. 
     Fun Home traça uma biografia do pai da autora conjuntamente com a autobiografia da própria, seguindo a tendência contemporânea no universo dos quadrinhos das histórias autobiográficas. Mas, pode-se dizer que ela não traça exatamente uma história, e sim, uma auto análise, reflexão e uma percepção particular e íntima de sua família, em especial a respeito do pai, sob a luz dos livros que este lia avidamente, e que, para quem ler perceberá, influenciou bastante na história dele e em suas atitudes. Isso me fez pensar num diálogo que tive uma vez com uma amiga, em que esta assumia que as atitudes que ela tomava  e por consequência uma boa parte de sua história havia sido influenciada por experiências literárias. Tiro por mim, também, que passei a apreciar e analisar mais as relações humanas, tanto as próprias quanto as alheias, numa espécie de exercício em busca de arquétipos e tipos sociais, motivado pela rica experiência observativa do livro de Marcel Proust, que se tornou o meu favorito, Em Busca do Tempo Perdido, além dos estudos fisiológicos russos do século XIX (não, nada a ver com a fisiologia do corpo humano), que se aventuravam em descrever estes tipos, uma espécie de crônica social romanceada.
     Já Você é Minha Mãe? é um livro mais maduro e surpreendente em sua abrangência temática. A literatura aqui é substituída pela psicanálise, exceto por referências a Virgínia Woolf. Aqui, o livro trata de Winicott, Woolf e Jocelyn, sua psicóloga. Todos esses exerceram uma influencia maternal em seu desenvolvimento mental, além de sua mãe genética. 


     As relações humanas acabam por ser o tema principal de ambos os livros, para o bem e para o mal, e isto foi o que me atraiu na análise das obras. Tolstói escreveu em sua famosa e supracitada frase de abertura de Anna Kariênina: "Todas as famílias felizes se parecem entre si. As infelizes são infelizes cada uma a sua própria maneira." Apesar de ter medo de chover no molhado com uma citação tão clichê, é exatamente isso que me veio à mente quando fiz a releitura de Fun Home, em que justamente na página de abertura há um desenho do livro de Tolstói, sendo que este não é mais mencionado ao longo do álbum de Alison. Fiquei besta com a incrível sutileza (ela comenta que seu objetivo é sempre informar algum detalhe sutil em cada um de seus desenhos, e ela consegue fazer isso magistralmente). Pois de fato a história da família Bechdel é infeliz, mas de uma maneira um tanto peculiar. A tristeza aqui não se traduz em sofrimentos físicos nem em algum tipo de violência doméstica, não ocorrem tragédias gregas ou romanas. A tristeza se revela por conta de que a autora se recusa a mascarar o que quer que seja, sendo obsessivamente sincera, além de filosofar em retrospecto a respeito de cada ato realizado por si e seus pais, a respeito de seus seres interiores, suas psíques, suas opiniões e atitudes. O que dá o tom triste (acho que melancólico é a palavra correta, pois a melancolia é sóbria e contida, como afirma Ariano Suassuna em A Pedra do Reino, palavras estas que poderiam ser usadas para definir o tom destes livros) é o ressentimento que ela desenvolveu contra os pais pela falta de afeto e contato físico. Como Bechdel interpreta a obra Winicott em Você é Minha Mãe?, refletindo que "o sujeito tem que destruir o objeto, mas o objeto tem que sobreviver à destruição", pois, "se o objeto não sobreviver, ele vai permanecer interno, uma projeção do Self do sujeito. Se o objeto sobrevive à destruição, o sujeito o observa como algo a parte". Da mesma maneira como Virgínia Woolf se livrou do fantasma psicológico de sua mãe sobre si ao concretizar Passeio ao Farol, Bechdel dá a impressão de querer se livrar do fantasma psicológico de seus pais, tornando-os meros objetos que ela poderá analisar de modo racional e menos emocional, impossibilitando-os de assim exercerem sentimentos de culpa nela.  


     Enquanto em Fun Home ela justapõe suas observações com obras literárias, em Você é Minha Mãe? ela o faz com as teorias do psicólogo e pediatra Donald Winicott (este livro me motivou a comprar um outro chamado Vivendo Num País de Falsos-Selves, do psicólogo pernambucano Júlio de Mello Filho, sobre as aplicações das teorias de Winicott em nossas rotinas cotidianas, o qual pretendo ler em breve), além de algumas poucas menções a Freud e Lacan. Seu estilo, apesar de autobiográfico, não se resume a contar uma história, como já disse. É como se ela escrevesse uma dissertação com suas reflexões, e para ilustrá-las, utiliza-se de momentos soltos de sua vida e da vida de seus pais, encadeando e correlacionando numa cronológica descontínua, o que se revela genial. Apesar do livro não possuir uma "trama", num sentido amplo, é justamente esse encadeamento e correlação que a delineiam.  Os capítulos foram escritos com esmero, lógica e coerência invejáveis, sempre com um final surpreendente arrebatador e dramaticamente eficientes (por exemplo, ela liga o fato de que seu pai ficou preso na terra aos 3 anos, e conecta com a reflexão sobre o pai morto, preso na terra para sempre).
     Ambos os livros são obras densas, que fogem do melodrama em busca da mais sincera realidade. Tem charme e tem poesia, de seu modo mas tem. Recomendo fortemente. 

    

segunda-feira, 10 de março de 2014

"QUANDO VOAM AS CEGONHAS", de Mikhail Kalatozov



     "Cegonhas, quais navios, brancas, cinzentas, voam isentas da gravidade, com os seus bicos esguios."


     Não conhecia esse filme até poucos dias atrás, quando resolvi conhecer um pouco mais do cinema russo e pesquisar suas obras mais significativas. E o que posso dizer? É uma obra-prima, que merece ser conhecida e estudada por todo cinéfilo pelo seu apelo emocional, e acima de tudo, pelo primoroso trabalho técnico. O festival de Cannes foi muito justo em premiá-lo com a Palma de Ouro, o prêmio mais importante do cinema. 

     O roteiro na verdade segue um enredo muito simples e por vezes é até esquemático e clichê. Conta a história de amor de Veronika e Boris, um jovem casal moscovita que em breve irá se casar... no entanto, Boris está indo para a guerra. Em sua despedida, Veronika se atrasa e perde Boris de vista na multidão. Então ele parte para a guerra sem se despedir de sua amada. E assim, acompanhamos Veronika, que nunca perde a fé de que seu noivo está vivo. 

     Como se vê, não há nada de extraordinário na história em si. Na verdade, o que faz esse filme a obra-prima que é, é a direção precisa de Mikhail Kalatozov, que sabe como enquadrar sua câmera como ninguém, além de conseguir captar todo o poder emocional que emana do rosto de Veronika, interpretada magistralmente por Tatyana Samojlova, uma interpretação digna dos maiores prêmios. O diretor faz com que nos apaixonemos perdidamente por Veronika no início, com seus trejeitos, sua faceirice e singeleza, para nos martirizar com seu sofrimento ao longo do filme. Seus olhares fortes e perdidos são de arrasar o coração. Os olhares expressivos são algo muito tradicional no cinema russo, pelo que estou percebendo. Em quatro filmes de épocas diferentes, percebi tal recurso, sempre muito bem utilizados: O Encouraçado Potemkin (1925) de Sergei Eisenstein, A Despedida (1983) e Vá e Veja (1985), ambos de Elem Klimov, e este que hoje analiso, de 1957.   

     Este filme possui muitas cenas que são dignas de aplauso pela construção técnica nem um pouco gratuita que servem para ilustrar o impacto emocional e vou analisá-las aqui neste parágrafo. Primeiramente, a cena em que Veronika está procurando Boris no meio da multidão. Um único plano sequência a acompanha do ônibus, descendo para a rua e andando por entre as pessoas que contrastam com seu rosto ao se mostrarem felizes, e de repente a câmera sobe numa panorâmica que para mim remeteu a cena de Scarlett buscando o Dr.Meade em ...E o Vento Levou (1939), de Victor Flemming. É uma cena com um dos melhores trabalhos de direção de figuração que eu já vi; outra cena que me chamou a atenção foi quando vemos o prédio de Veronika devastado e pegando fogo. A câmera a acompanha subindo as escadas que anteriormente tinha sido palco de uma das cenas de romance do filme, logo no início, e isso nos permite entender a avidez aflita com que Veronika sobe aqueles degraus. A imagem panorâmica da destruição que está presente no ápice da cena é arrasadora. A direção de arte merece muito aplauso; outra cena de destaque, uma das cenas mais atmosféricas que eu já vi, é o momento em que Mark toca piano para acalmar Veronika quando a sirene de alerta de bombardeio começa a tocar. E então, quando o bombardeio começa, ambos abraçados e com medo, Mark a encara com olhos gananciosos e a beija a força. A direção de arte mais uma vez contribuiu junto com a iluminação e a fotografia, uma sequencia de arrepiar. A presença da cortina que é suspensa com o vento e que encobre o rosto de ambos enquanto Veronika foge de Mark é um toque de mestre, é uma cena digna de ballet; A cena em que Veronika corre pelas ruas foi filmada de uma maneira muito intimista, e as colunas gradeadas das casas, juntamente com a montagem, transmite todo o cansaço e desespero dela fantasticamente. E então, vem a cena que mais me chamou a atenção de todo o filme, uma das cenas de morte mais arrepiantes da história do cinema na minha opinião, que é na cena em que Boris leva um tiro na guerra. A destreza da montagem dessa cena é algo apaixonante de se ver. Entramos na mente de Boris em seus últimos instantes e vemos as imagens se misturando, uma mistura de lembranças, sonhos nunca realizados, e a última imagem que ele percebe antes de morrer: a copa das árvores, cujas folhas, em imagens justapostas com o rosto alegre de Veronika, cria uma sensação de fragmentação do rosto desta última, o que mais uma vez me emocionou muito. Chorei rios nessa cena.

     Gente, se vocês lerem essa resenha e amam verdadeiramente o cinema, digo: busquem esse filme, não vão se arrepender, é uma lição de cinema das melhores que há, em todos os aspectos: direção de arte, fotografia e iluminação, montagem, interpretação e direção. Vale muito a pena, de verdade.    

   
     Para quem se interessou, aqui nesse blog tem o link para baixar por Torrent:
     http://saladeexibicao.blogspot.com.br/2010/01/quando-voam-as-cegonhas.html

quarta-feira, 5 de março de 2014

CRÍTICA: "TERRA DE NINGUÉM" de Terrence Malick

   
Terra de Ninguém (1973). Direção e Roteiro de Terrence Malick. Com Martin Sheen e Sissy Spacek

     Terrence Malick é um cineasta cujos filmes tem um poder indescritível sobre mim, sempre me emocionaram, desde que assisti A Árvore da Vida, meu primeiro contato com a obra do diretor. Trata-se de um tipo muito peculiar de emoção: a emoção sensorial e espiritual, e como cada um têm sensações e espiritualidade diferentes, seus filmes se tornam muito pessoais e íntimos a seus espectadores. São obras que têm uma grande comunhão com a natureza, e através dessa comunhão, abre uma janela para o nossa alma e nosso inconsciente, e nos lembra que nós mesmos somos parte dessa natureza encantadora e ao mesmo tempo devastadora, que sempre está em guerra consigo mesma. Resolvi resenhar então os filmes de Malick, a começar por Terra de Ninguém. Sei bem que o diretor não é uma unanimidade, geralmente tendo mais detratores que apreciadores, mas raramente as pessoas entendem porque gostam ou desgostam de sua obra. Assistir a seus filmes é como ver quadros de arte sacra, não do tipo que retrata vida dos santos ou de Jesus Cristo, mas obras subjetivas que trazem simbolismos sagrados por trás, como os quadros de Giotto. Nem por isso sou religioso, apenas aprendo a compreender a experiência religiosa e as tenho à minha maneira. Claro, quase nenhum de seus filmes são sacros explicitamente, exceto A Árvore da Vida e Amor Pleno, mas todos trazem uma carga espiritual e emocionais muito intensas, principalmente seus quatro filmes mais recentes. Os dois primeiros são parte do cinema dos anos 70, com uma trama mais explícita e uma maneira mais convencional e linear de contar uma história, mas acredito que os 20 anos que Malick passou sem dirigir um filme amadureceu sua maneira peculiar de fazer cinema, o tornando um cineasta extremamente autoral e consistente, coisa rara de se ver hoje em dia.

Uma história de amor? O retrato de um romance?

     Terra de Ninguém já possui certas características da gramática atual do diretor, mas é um filme bastante diferente de sua filmografia. Como disse acima, seu primeiro filme é fruto dos anos 70, em que o cinema foi marcado por uma diversidade de anti-heróis, como o Travis Burkle de Taxi Drive, Michael Corleone de O Poderoso Chefão... e o jovem Kit, do filme que iremos analisar a seguir. Nunca mais o cinema de Malick teria um sujeito de moral tão discutível, um verdadeiro bad boy, como protagonista, mas também, nunca mais teria um personagem com uma personalidade tão bem delineada. Depois deste filme, Malick começou a priorizar a percepção sensorial em detrimento do desenvolvimento de personagens, o que fez com que muitos espectadores o taxassem injustamente de superficial, resumindo sua obra a "uma série de imagens de cartões postais coladas juntas". Mas para mim, sua obra é muito mais do que isso. Mas voltemos a Terra de Ninguém.

     O filme foi inspirado no caso real de Charles Starkweather e Caril Fugate, um casal de adolescentes que em 1958 saiu matando, nos estados de Nebraska e Wyoming, 14 pessoas. Inclusive Charles matou o pai de Caril, o que Malick expõe no filme. No entanto, o nome dos jovens é trocado por Kit e Holly. Em meio a essa onda de violência, há uma narração em off bucólica na voz de Sissy Spacek durante a viagem deles, que, como veríamos depois, se mostraria a marca registrada de Malick, embora essas narrações aqui tenham a diferença de realmente fazer parte da história, com um intuito específico de mostrar o contraste entre a onda de violência crescente e a visão romântica de Holly. Ao contrário, em seus outros filmes, a narração é usada mais com um intuito sensorial (de novo essa palavra! Se tratando de Malick, é inevitável). Essa visão romântica é apoiada pela trilha composta por George Tripton muito adequadamente, além de músicas de Carl Orff e Erik Satie.

Adão e Eva no Paraíso?

     Martin Sheen tem uma de suas melhores performances como Kit, o jovem rebelde que lembra a rebeldia pulsante de James Dean, e tal comparação é feita mais de uma vez ao longo da película. Isso é um detalhe não ocasional: Charles Starkweather também foi comparado a James Dean na vida real. Já Sissy Spacek como Holly está tão inexpressiva que incomoda, mas creio que foi proposital, afinal, o personagem pedia um ar de inocência sonhadora, inconsequente e alheia ao que ocorre ao seu redor.

     Apesar de o filme ser diferente em tom dos demais filmes de Malick, há aqui alguns elementos comuns em toda a sua filmografia. Além da narração em off já mencionada, há também a presença da natureza como força motora de problemas e alegrias, concomitantemente. É na natureza que os jovens primeiramente tentam refúgio em sua fuga, desfrutando de uma sensação estarem no Jardim do Éden, onde fazem o papel de Adão e Eva em meio ao paraíso. É na natureza que eles se sentem bem, que eles se permitem conhecer um ao outro. E é na natureza que eles começam a se desencantar um pelo outro. Mas é claro, a paz na natureza é algo efêmero e insustentável.

Paz na natureza? Ou.. paz na natureza primitiva do homem?

     A fotografia magistral de Brian Probyn, Stevan Larner e Tak Fujimoto (de O Silêncio dos Inocentes) revelam, através de seus filtros, os mínimos detalhes dos ambientes e paisagens por onde os jovens passam. Em relação a fotografia, os filmes de Malick só fizeram melhorar, atingindo o ápice da beleza em O Novo Mundo (2005). A montagem ainda é bem convencional. O filme ainda não possui os experimentos de edição dos demais filmes.

Alienação autoinduzida

     A excelente narrativa que se analisarmos bem, é doentia pelo contraste que transmite, unida pela bela fotografia e a ótima atuação de Martin Sheen fazem de Terra de Ninguém é um excelente filme, e merece ser relembrado pelas novas gerações. É um reflexo do que a boa fé em quem se ama associada  à uma alienação e autoinduzida podem acarretar.



Trailer: