Precisamos Falar Sobre o Kevin acabou
por ser uma leitura densa, que exigiu muito de mim, até mesmo fisicamente
falando (tive uns pesadelos estranhos por conta deste livro e acordei cansado
por conta deles), mas jamais me desestimulou, e lê-lo lentamente, analisando a riqueza
da escrita de Lionel Shriver, foi um prazer indescritível. É muito bom quando
descobrimos uma escritora que não está simplesmente preocupada em narrar uma
ação do início, meio e fim, mas utiliza recursos para esmiuçar — através de um
olhar subjetivo elegante, seco, pungente, de forte acidez crítica, mas também
de uma, por vezes, delicadeza apaixonada (sobretudo quando a narradora se
refere ao seu marido ausente, em alguns momentos) — o significado de tudo o que
ocorre, traçando paralelos e comparações da história narrada com exemplos reais,
além de analisar tudo, na medida do possível, sob a luz da psicológia, mas
ainda assim, permitindo à narradora tomar partido. Em poucas palavras: esse
livro é uma obra prima, na minha humilde opinião, um livro que já nasceu
clássico, tanto pela urgência do tema quanto pela força narrativa.
O livro conta a história de Eva
Katchadurian, uma mãe americana atípica, descendente de armênios e que, cidadã
do mundo por conta de sua profissão, se sente uma estrangeira em seu próprio
país. Percebemos desde o início do texto um sentimento de inadequação a alguma
coisa: ao seu marido (apesar de amá-lo muito), aos seus próprios pais, às
pessoas de seu convívio, ao seu lar, e principalmente, à maternidade, que é o
grande tema do livro. Desde o princípio, sabemos que ela é a mãe de um adolescente
igualmente atípico, o Kevin do título, um psicopata que assassinou sete colegas
de classe, uma professora e um servente da escola três dias antes de completar
a maioridade penal. A partir dessa premissa, através de cartas ao marido
ausente, Lionel Shriver compõe um dos melhores exemplos de romances epistolares,
relatando em retrospectiva sua vida antes e após o casamento, o período da
gravidez, a dificuldade de se criar um filho, principalmente um como Kevin, que
não demonstra interesse por nada. O romance não segue uma linearidade nem temporal
nem analítica, o que ajuda a estabelecer uma dinâmica interessante.
O fato de Kevin ter cometido essa
atrocidade leva Eva a escrever ao marido as cartas, e a sinceridade das
palavras de Eva, que trazem um tom um tanto melancólico, mas ao mesmo tempo
ácido, denunciam que essas cartas são um recurso utilizado por Eva para não se
deixar dominar pela depressão e estagnação, tratando-se de uma maneira que ela
achou para se manter plena de consciência, ao invés de desabar no chão. Isso já
trás mais um pouco da característica de Eva: uma mulher forte, empreendedora,
mas ao mesmo tempo egoísta e desapegada. Até onde seu jeito de ser e de se
comportar, seus atos e comentários inspiraram o pequeno Kevin a cometer sua
carnificina? Reflexões desse tipo a levam a um sentimento de culpa que cresce
aos poucos, embora percebemos um esforço tremendo para a manutenção de seu amor
próprio e para evitar a negação de si mesma, tentando destruir sentimentos de
derrota. Ela assume responsabilidades de uma maneira muito elegante.
Através desses sentimentos e dos detalhes desenvolvidos e comentados, Lionel
Shriver acaba por esculpir um verdadeiro tratado sobre a maternidade: o que é
ser mãe? As perdas que as mães sofrem por causas do filhos. As mães tem culpa
pelos atos dos filhos? É pecado as mães odiarem os próprios filhos? Várias
outras questões acerca da maternidade são postas em evidência. A cultura
crescente dos assassinatos nas escolas são postas como pano de fundo para essas
reflexões. O propósito do livro não é analisar o que leva os adolescentes a
cometerem atos tão violentos. Ainda assim, em paralelo ao caso de Kevin,
acabamos por conhecer, ao longo do texto, vários exemplos de casos históricos e
reais de atentados, e a motivação dos executores; por mais irônico que possa
parecer, essas foram algumas das poucas partes que eu me pus a rir durante o
texto, e os comentários de Eva são muito bons.
Além de tudo isso, o texto ainda reflete acerca
o poder do medo sobre uma população frágil e ingênua, como é a população dos
Estados Unidos da América. Quem já assistiu Tiros em Columbine, de Michael
Moore, vai se lembrar dos comentários do cineasta a respeito da paranoia generalizada
que o medo ocasionou.
Enfim, um grande livro. Isso
resume tudo e o resto é conversa. Boa leitura.