quinta-feira, 24 de julho de 2014

Resenha do conto O GERÂNIO, de Flannery O'Connor

     

     Não há nada mais difícil que mudar a visão de mundo, opiniões deturpadas, sedimentadas durante décadas, na mente de um idoso, quando a necessidade de uma mudança de tal natureza se dê mais pelas mudanças, ao longo dos tempos, de valores éticos e sociais essenciais que regem o senso comum, que por qualquer outra coisa. Se levarmos em consideração isso, poderemos apreciar o conto O Gerânio em toda a sua ambiguidade moral. Trata-se da história do velho Dudley, um personagem pelo qual Flannery O’Connor magistralmente nos faz sentir simpatia por adentrarmos na mente melancólica de seu idoso protagonista, nos mostrando suas dificuldades de adaptação à cidade grande (Nova York, ele, que vem de uma realidade campestre do sul dos Estados Unidos), seus anseios, suas lembranças (qualquer objeto é um motivo para se lembrar de algo ou alguém de sua realidade anterior, como, por exemplo, uma simples planta, o gerânio do título, lembrar-lhe um menino com poliomielite, Grisby), as confusões mentais da velhice, para logo em seguida nos surpreender com o enorme preconceito que este guarda implacavelmente em seu cérebro. Entretanto, a sensação é que não o guarda no coração. Suas lembranças de Rabie, um negro do sul, que o ajudava em suas caçadas e pescaria, revelam certo carinho pelo amigo (que ele procura jamais o chamar de amigo, que isso seria indecente por ele ser negro) e saudade, apesar de ser uma saudade não declarada, não escancarada em palavras doces de saudade, mas apenas reveladas pelas lembranças de bons momentos.
     Assim, é assustador e surpreendente quando Flannery nos revela um parágrafo como este:

     Começou aos berros: “Você não foi criada assim! Não foi criada para viver junto com negros que pensam que são iguais a você. E depois ainda vem com essa, achando que vou me meter com alguém dessa raça? Você deve é estar maluca, pra chegar a cismar que estou querendo alguma coisa com eles” (...) Ele sabia que os americanos do Norte recebiam negros pela porta da frente e permitiam que se sentassem nos seus sofás, mas não sabia que sua própria filha, tão bem-criada como tinha sido, fosse capaz de viver com eles na porta ao lado – achando ainda por cima que ele perdera o juízo, que queria se misturar. Logo ele!

     Mas o que fazer com um preconceito tão enraizado na cultura sulista? Lembro claramente de outros livros que li, de negros criados de brancos sentindo preconceito com pessoas de sua própria cor. Assim, ao mesmo tempo que sentimos simpatia, como geralmente sentimos com os velhinhos, sentimos raiva pelo preconceito (graças a Deus, apesar de ainda existir muito racismo aqui no Brasil, não chegar aos níveis do sul dos Estados Unidos, ilustrado por organizações como Ku Klux Klan e pela segregação racial dos anos 1960 – e por isso é de se admirar o trabalho de Martin Luther King frente a essas adversidades).

     
     Esse conto nos revela que o ser humano é mais complexo que seus preconceitos. 

sábado, 19 de julho de 2014

REFLEXÕES SOBRE "ADMIRÁVEL MUNDO NOVO" de Audoux Huxley



   Imagine uma sociedade em que todos são felizes em seus trabalhos, e que, por não haver a inveja em relação a posição privilegiada dos superiores, ninguém se machuca com maus pensamentos, não se angustia (pois a sociedade não têm mais problemas com o que se preocupar), têm a humildade de não desejar mais do que aquilo que podem possuir, e portanto, não há roubos, não há violência, por consequência não há presídios a serem ocupados por prisioneiros, pois não mais existe o ato que separa uma pequena transgressão dos bons costumes vigentes - que não fazem mal a ninguém, não é? - de um crime propriamente dito; imagine uma sociedade limpa e higiênica, onde moléstias de todo tipo que se possa imaginar foram erradicadas ao longo dos anos; imagine uma sociedade em que o crescimento populacional está bem controlado, ou seja, não há mais que burlar a terceira lei de Newton para poder viver confortavelmente; imagine uma sociedade que não tem mais noção do que é solidão, melancolia, tristeza, depressão, e em que a perspectiva da morte não é mais capaz de afligir ninguém. Você acha que isso é um protótipo modelo de uma sociedade perfeita? Se sim, você precisa ler esse livro urgentemente. Mais necessitados ainda de sua leitura estão aqueles que adorariam viver nessa sociedade pelo simples fato de que se pode transar a vontade com quem quer que seja.



     Com bem diz a jacket da minha edição, o slogan COMUNIDADE, IDENTIDADE, ESTABILIDADE sustenta a trama social dessa obra, que se passa no futuro 632 depois de Ford (aquele dos automóveis, e que acabou por influenciar a "filosofia" da produção em massa, inicialmente dos automóveis, e posteriormente dos mais diversos produtos). Há que se abordar cada uma das partes do difundido slogan levando em consideração o contexto da trama. Pois bem, vamos lá.




    O que aconteceria se um grupo de pessoas extremamente inteligentes, com iguais capacidades intelectuais e práticas, habitassem uma ilha deserta e tivessem que construir uma nova civilização por conta própria? Passados anos, se nos fosse permitido acompanhar o desandar da experiência, no resultado desse processo civilizatório possivelmente veríamos, como vemos em todos os países e cidades, governantes e governados, líderes e subalternos, reis e comerciantes. Pois o fato é que não existe civilização sem as mais diversas camadas sociais (se todos fossem líderes de grandes empresas, quem cuidaria do saneamento básico tendo que enfrentar o cheiro de merda todos os dias?). Como por fim se determinou, nessa hipótese, tal quadro, se todos tinham as mesmas capacidades? Provavelmente através de brigas, de criação de facções, de intrigas e de brutal violência, associados ao grande esforço demandado para a criação de um Estado e suas instituições. Pois o fato é que numa sociedade assim, alguém que está por baixo mas tem plena convicção de suas capacidades não se contentaria em permanecer nessa posição por muito tempo, e consequentemente o ciclo de intrigas e dissimulação continuaria (claro, se há empreendedorismo, pode-se chegar ao topo da camada social independente de intrigas, na mas pura honestidade, mas vamos considerar, seria esse o padrão dominante no que concerne as atitudes humanas?)



     Há assim que se aplaudir essa sociedade futurística que nos é apresentada, não? Afinal, não há mais intrigas, nem violência, nem inveja. Existem líderes e subalternos, mas tudo é tão condicionado para o bem estar que ninguém está insatisfeito com a posição em que se encontra. A COMUNIDADE, assim, é dividida em várias castas, das mais superiores às mais inferiores, e seus integrantes estão felizes onde estão, pois foram condicionados para isso, e é assim que se mantém a ESTABILIDADE, através do condicionamento - uma vez eu li em algum livro de autoajuda que o cérebro é burro, e portanto, se você se sentir triste, sorria, mas um sorriso verdadeiro, que então o cérebro será CONDICIONADO a interpretar que você está feliz. Então me pergunto: seria a felicidade plena nociva? Devemos nos perguntar, antes de tudo, que tipo de felicidade é essa. Dependendo, pode-se determinar com afinco que a felicidade é não só nociva, mas é nociva por ser burra também.



     Falo da felicidade banal de livros de autoajuda e daqueles que só leem esse tipo de livro. A felicidade encontrada por meio das drogas alucinógenas. A felicidade por se poder comprar coisas além do poder de consumo (eu também sou burro: tenho o vício de comprar livros em excesso). A felicidade que, quando nasce, distorce a realidade, nos isola em nossa própria ignorância. Os agentes das verdadeiras mudanças políticas e sociais raramente tem esses comodismo e fuga, e ainda bem, pois senão estaríamos lascados. Felizmente há pessoas inconformadas no mundo, insatisfeitas com o sistema vigente. Durante esses protestos por conta das Jornadas de junho do ano passado e os decorrentes da  corrupção da Copa do Mundo da FIFA (porra nenhuma que é Copa do Brasil! Só quem levou a melhor foi a FIFA com a isenção de impostos), bem que o governo gostaria de soltar vapores de SOMA para acalentar os revoltosos, e já que não tem tal tecnologia, o substituto é certamente uma bala de borracha na bunda dos manifestantes e bombas de efeito moral.



     Pois o que garante a ESTABILIDADE dessa sociedade é o SOMA. Trata-se de uma droga alucinógena que não possui efeitos colaterais graves, sendo um instrumento do estado para acalentar os impulsos da personalidade, os anseios, a força do livre pensamento que existe dentro de nós, e cujo uso deliberado é preconizado por um ensino hipnopédico, a máquina do senso comum, e que tristemente, na realidade suscitada no livro, é imposta sistematicamente, numa espécie de regime mental. A questão do SOMA pode ser interpretada fazendo paralelos com o uso atual das drogas alucinógenas, e o alheamento de seus consumidores é um fato preocupante. Mas eu interpreto de outra maneira. O SOMA, junto com a HIPNOPEDIA, é na verdade uma alegoria a um sistema complexo e intrincado capaz de impossibilitar o contato de ideias realmente válidas e perigosas. Sabemos que no Brasil o público leitor é uma minoria absoluta (mas que, pelas estatísticas mais recentes fiquei surpreso ao ver que o número vem crescendo aos poucos), e, por muito tempo, o que era dito (e encoberto) na mídia se tornava uma verdade absoluta pela maior parte da população. A mídia (refiro-me a mídia de massas, capitalista por natureza, cuja única preocupação é alcançar um bom Ibope) se fez pão e circo. Esta mídia nos hipnotiza, nos faz esquecer de nossas vidas em detrimento de problemas mesquinhos e irreais das telenovelas (generalizo, mas óbvio que exceções existem para tudo). Esse desserviço em matéria de educação das grandes emissoras é uma das grandes responsáveis pelo declínio cultural da população; uma mídia que introjeta o senso comum, que mascara o que lhe compromete e o que poderia ser a força motriz de, se não uma revolta, um mal estar na boca do estômago. O que pode nascer desse mal estar é algo incerto, mas tenebroso. A mídia contribui para a manutenção dessa tirania disfarçada de democracia em que vivemos, desse conformismo pautado num prazer imposto goela abaixo do espectador. Que nem o SOMA. Visto que poderia-se dizer que a culpa é do povo que gosta  dessas porcarias e que dá audiência para as emissoras temos que observar que infelizmente hoje em dia essa questão é uma faca de dois gumes na hora de atribuir a culpa em alguém.

       
           Confesso que, por ser tão comentado e discutido ao longo de seus 82 anos de existência, esperava muito mais do livro. Não critico o âmbito das discussões que suscita, mas a forma narrativa que o autor escolheu para arquitetar seu texto e apresentar suas ideias (e o fato de, no final do livro, durante o fantástico debate entre O Selvagem e o Diretor, - que resume basicamente o que as ideias contidas no livro, portanto, não avancem as páginas, embora certamente será a única parte que me interessarei a reler no futuro - o diálogo ser apresentado de maneira tão mais clássica, e ganhando força por conta disso, me faz pensar que o livro é um tanto heterogêneo, e não sei dizer se isso é bom ou ruim exatamente) me pareceu meio solta, apressada e por vezes desnecessariamente confusa. Não sei, talvez tenha um problema sério com livros que não investem numa descrição mais elaborada dos sentimentos e pensamentos (tudo bem, eu entendo que o livro é futurista e etc, mas enfim, sinto falta de um pouco de fluxo de consciência que tanto admiro em meus autores prediletos, e ao invés de ficar citando a torto e a direita frases shekesperianas, O Selvagem poderia muito bem pensar pensar por si próprio). A despeito do debate já citado ser excelente, O Selvagem apresenta um conhecimento muito mais aprimorado do que a realidade permitiria que ele viesse a desenvolver. Ler Shakespeare não seria suficiente para aprimorar sua mente e lhe trazer o senso crítico que ele demonstra. Felizmente o autor reconheceu essa falha no prefácio que acompanha o volume (e que deveria ser um posfácio pelo número de spoilers por metro quadrado que possui). Enfim, o livro é muito, muito bom, mas, como diz o senso comum, nem tudo pode ser perfeito neste mundo (eu particularmente conheço obras de arte perfeitas em sua adequabilidade estética para o tema que investiga, mas são raros).
     
     Fico triste com toda a liberdade que temos e que pouco usufruímos. Odeio esse tipo de desperdício.




      

domingo, 13 de julho de 2014

Resenha: A ÁRVORE DOS DESEJOS, de William Faulkner



     William Faulkner é um dos escritores do século XX que mais admiro. A polifonia narrativa de seus romances é uma das técnicas literárias mais geniais já criadas, juntamente com o fluxo de consciência que ele tanto aprimorou em suas páginas, imprimindo um senso poético peculiar a histórias tão pungentes, viscerais e por vezes violentamente perturbadoras (me vem a cabeça principalmente Absalão, Absalão!), uma poesia decorrente das mais intrigantes reminiscências da memória e da pura imaginação. 
     
     No entanto, antes de Faulkner se tornar o escritor genial que se tornou, ele escreveu um livro infantil chamado A Árvore dos Desejos, no longínquo ano de 1926 (imediatamente depois de seu primeiro romance Paga de Soldado), mas que só foi publicado postumamente. É que ele o escreveu não com o intuito de publicação, mas simplesmente com a finalidade de presentear os filhos pequenos de seus amigos em seus aniversários. Achei uma excelente ideia, visto que hoje em dia, ao invés de se preparar algo com as próprias mãos, com o próprio engenho e destreza (ou a falta dela, mas que ao menos se poderia dizer, ante uma tentativa falha, que foi de coração com as melhores das intenções), é mais prático ir ao shopping e comprar algo que, no final das contas, alimentará as esperanças mimadas de no ano seguinte conseguirem algo ainda de maior valor monetário em detrimento do valor emocional que não seriam capazes de perceber de um presente feito pelo próprio ofertante! Será uma coisa que farei em breve também. Dane-se se não se apercebem dessas sutilezas emocionais, um dia se darão conta. 

     Assim, pelo estilo que Faulkner imprimiu em suas obras adultas, olhei com um misto de curiosidade, afinal é uma referência para mim, e de suspeita, visto que estava esperando algo no estilo dos contos de Sagas, de Strindberg, também único volume pretensamente infantil de um escritor intrincado, mas que possuem um certo hermetismo remanescentes de suas obras adultas, hermetismo este que me deixou desconcertado quando de sua leitura há 5 anos atrás (preciso relê-lo). Assim, esperava algum hermetismo da parte de Faulkner também neste pequeno livro. À curiosidade, no entanto, foi somada a fascinação que desmanchou as suspeitas restantes ao prosseguir da leitura, até completamente fragmentá-la e dissipá-la. 

     O fato é que de difícil o livro não tem nada. Além disso, não esperava tanto senso de humor (lembro-me, em Matilda, de Roald Danw, que a pequena leitora criticava bastante os livros infantis que não eram engraçados, como As Crônicas de Nárnia). Através de descrições imagéticas e fantásticas narradas num ritmo muito gostoso de se ler (não há hermetismo, mas há ainda a harmonia tão cara ao autor), além de uma dinâmica de diálogos quase teatrais e que é o elemento de maior graça do livro, a narrativa acompanha Dulcie (que menina fofa!), que, por conta de ter entrado na cama primeiro com o pé esquerdo e virado o travesseiro de lado, é surpreendida no dia seguinte, ao despertar, com um mundo cheio de possibilidades, em que tudo pode acontecer, estas tão mágicas palavras que nos encantam na infância, derivadas de singelos contos de fada. 

     Assim, Dulcie, junto com Dirkie (seu irmão pequeno), Geoge (seu vizinho) e Alice (sua babá), acompanham o garoto misterioso Maurice (de onde veio esse personagem? Ninguém sabe. Personagens obscuros também são uma marca registrada de Faulkner) seguem rumo em direção a árvore dos desejos do título, encontrando no caminho o velhinho Egbert, que diz ser um dos únicos a conhecer a árvore dos desejos. São os diálogos entre Alice e Egbert um dos elementos mais cômicos do livros, ainda que a força motriz de tal comicidade seja pautada em preconceitos por parte de Alice (o que pode levar alguns a rejeitarem a obra). O fato é que, para quem conhece a ficção adulta de Faulkner, o preconceito é um de seus temas prediletos, principalmente o racial. Isso me faz especular que o velho Egbert seja negro, e isto seja os motivos das implicâncias de Alice. E se uma de minhas outras especulações fosse verdade, a de que Alice, na posição de babá, isso no Sul dos Estados Unidos no início do século XX (não fica claro também se a obra se passa nessa localidade, mas levo em conta a maior parte de sua obra, podendo-se passar também no século XIX, antes da Guerra de Secessão, quem sabe? Só o próprio Faulkner poderia responder), sobretudo no imaginário Condado de Yoknapatawpha, também fosse negra, isto demonstraria um subtexto sociológico preocupante, em que as negras gentis criadas em contato com senhores brancos não se considerassem negras e sujugassem aqueles com sua mesma cor de pele. Mas claro, isto está além da obra infantil que ele criou. São meras especulações, tendo como base comparações que talvez sejam inadequadas.

     Não é o melhor livro infantil que já li, mas é muito bonito. Para quem gosta de livros com uma moral, o livro a possui também, como as fábulas antigas. Associada com a beleza da escrita de William Faulkner, o investimento

     Acabei por fazer uma resenha grande e talvez desnecessariamente racional para um pequeno livro infantil. Mas é um bom livrinho. A única coisa da edição da CosacNaify que não gostei foi que ele, apesar de ser um livro infantil, tem mais apelo de vendas ao público já conhecedor do autor. As ilustrações de Eloar Guazzelli que acompanham o texto são boas, mas pouco lúdicas para seu público alvo. Fora isso, é um bom livro.