quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

CRÍTICA: "A MENINA QUE ROUBAVA LIVROS" de Markus Zusak



     Li A Menina que Roubava Livros com alguns anos de atraso. Tinha ele na estante numa edição meio suja comprada num sebo por um preço bem abaixo dos RS 40 que custavam na época novo, e até tinha tentado ler há cinco anos atrás, mas desistido após a página 100 por conta de que peguei livros que na ocasião me pareceram mais interessantes. Mas ano passado resolvi tirar o atraso, e posso dizer que tive uma grata surpresa.


     Narrado pela morte, o livro conta a história de Liesel Meminger, filha de comunistas, que por volta de seus 8 anos é adotada por uma humilde família alemã, que receberia duas ajudas de custo do governo para cuidar da menina e seu irmão, sendo que este último acaba morrendo no trem no decurso da viagem. Durante o enterro de seu irmão, a jovem rouba um livro caído na neve, O Manual do Coveiro, e este é o primeiro livro de muitos que a menina roubará ao longo dos anos. Acompanhamos então a trajetória de Liesel em meio a ascensão da Alemanha Nazista ao longo de alguns anos: o desenvolvimento afetivo na relação com seus pais adotivos; suas amizades de infância, e é uma coisa muito natural que na infância exista aquela amizade idílica que só pertencerá a esta fase de nossas vidas, aquele amigo marcante que ao crescermos nunca mais teremos notícias sobre, mas que sempre estará em nossas lembranças mais querida, sempre trará aquele gosto de nostalgia (inclusive, após meses e meses em que li o livro, ainda sinto saudades dos bons amigos Liesel e Rudy); seu envolvimento com grupos de ladrões de comida e delinquentes é um reflexo da fome assolando sua comunidade e vários outros problemas que a guerra trás, mas que nenhum deles impede a fome da menina pelo conhecimento e pelas letras, por mais que ela faça muitas vezes esforço para não se desviar de seus intentos por conta da barriga roncando, e Markus Zusac é muito feliz ao retratar tudo isto sem parecer forçado ou antinatural. O livro parece acreditar que, apesar de toda uma sorte de catástrofes ao redor, e mesmo que estes o atinjam impiedosamente, o ser humano deveria buscar o aprimoramento intelectual, mesmo que isso represente ter atitudes ditas amorais, como roubar. São essas pessoas que tentam achar uma razão a mais para viver e não somente para sobreviver, e que trazem uma luz para os outros ao redor. Há um outro livro que parece mostrar esta mesma filosofia, O Menino que Descobriu o Vento, o livro autobiográfico de William Kamkwamba, que venceu as adversidades geográficas e de preconceitos para trazer energia elétrica por meio de métodos alternativos numa região com uma infraestrutura zero e assolada pela fome endêmica num dos países mais pobres e esquecidos da África, ajudando toda a sua comunidade a ter um mínimo de prosperidade. E é Liesel, com histórias aprendidas nos livros e remodeladas e reinventadas em sua imaginação que trará conforto a todas as almas apreensivas no porão, durante bombardeios aéreos. Acima de tudo, A Menina que Roubava Livros é um belo livro sobre a infância. Criança é criança em qualquer cultura e em qualquer época histórica, mesmo em tempos conturbados, e estes problemas fazem crianças mais espertas e desenvoltas, capazes de encarar o mundo cão que as cerca. Apesar de tudo, Liesel não teve sua infância perdida. Foi uma bela infância.

     O fato de a Morte narrar o livro não o torna macabro ou algo do gênero. Na verdade, ela nunca foi retratada de maneira tão delicada, se tornando uma amiga chegada nossa. No entanto, muitas vezes, o autor se esquece de quem conta a história em alguns momentos e admite uma narração onisciente tradicional. Ao menos nos momentos chaves, a narração poética de nossa companheira está lá. O modo como ela conta a história cria um ritmo muito interessante. Quase não havendo frases subordinadas, elas parecem mais versos de um poema, muito apropriado para narrar a infância de Liesel, onde conta sua história de uma maneira episódica (o que geralmente não é um bom sinal, mas que aqui funciona muito bem). Esta mesma narração poderia ser acusada de revelar um romantismo ingênuo por parte de Zusak, mas não concordo inteiramente com essa opinião. Ele não ignora os problemas da vida, e ter um mínimo de esperanças não é falta de realidade ou sinal de escapismo. Poderíamos acusar Zusak de ter amenizado as coisas ao final, evitando um final impactante por sua violência. Mas, puxa vida, os eventos já são violentos por si só, sem precisar de uma percepção gráfica desta violência. Assim, o autor acertou em cheio na opção narrativa do livro e no seu desenvolvimento.

     Mas nem tudo são flores. O sonho em que Max, o judeu que se esconde no porão da casa de Liesel, luta contra Hitler numa arena é de um maniqueísmo e ingenuidade que irrita. Da mesma maneira, em alguns momentos, a fome e outros problema nos são apresentados, mas não nos é explicado claramente como a estas adversidades foram superadas, o que foi um erro, visto que com a fome, há a morte, e com a morte, não há história. Mas claro, são erros pontuais.


      A Menina que Roubava Livros é um livro que tem muito a nos ensinar sobre a compaixão pelo próximo, sobre viver em comunidade e cultivar amizades. E é muito interessante que este seja o livro mais lido no Brasil pelos presidiários.

      Então, para quem não leu, fica a dica.

     

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

CRÍTICA: DEPOIS DE LUCÍA


Depois de Lucía (2012). Roteiro e direção de Michel Franco. Com Tessa Ia e Gonzalo Vega Jr. Coprodução: México e França.


Depois de Lucía é um filme bastante delicado que retrata dois temas difíceis de serem bem trabalhados sem que se recorra a clichês: o bullying e a depressão. No entanto a película trata desses temas de maneira sutil e ao mesmo tempo incisiva, sem aquele ar afetado típico de melodramas com mensagens de superação. É um filme angustiante, e todas as opções estéticas utilizadas pelo diretor Michel Franco contribui para isso, por evitar o artificialismo. Ele faz questão de enquadrar belamente as cenas, mas mantém a câmera estática e fria, criando um quadro em que as vítimas sofrem e não podemos desviar nosso olhar e nem fazer nada para ajuda-las, salientado pela trilha sonora, que é o som de cada ambiente particular. Sentimos que o personagem Alejandra, interpretada lindamente pela jovem Tessa Ia, a partir do segundo ato do longa precisa de um momento de silêncio, um silêncio reconfortante, só dela, e torcemos para que ela o encontre, o que parece nunca acontecer, visto que no decorrer de tudo, o silêncio trás um quê de ameaça e de angústia. No entanto, ela o acaba encontrando, o que só ocorre no final, e este é seu protótipo de final feliz, em que não há realmente nada de grandioso. Seu final feliz não é devido a ela lutar pela sua dignidade, mas pela fuga de seus problemas. Mas paira no ar a incerteza, pois sabemos que aquele sentimento de segurança é algo efêmero e instável. Uma hora a realidade chama de volta.



Gonzalo Vega Jr. interpreta o pai de Alejandra, que após a morte de sua esposa Lucía (cujo nome jamais é mencionado, o que nos mostra que até o título é um detalhe a ser levado em conta, vide a obra-prima romena 4 meses, 3 semanas e 2 dias, cujas opções técnicas têm muito em comum com Depois de Lucía), revela traços de depressão, percebida por sua filha, e que parecem aumentar cada vez mais. Uma depressão que subverte muitas vezes a própria personalidade do sujeito, e que o leva a ter atitudes desconcertantes para nós em alguns picos de adrenalina por seu caráter questionável, que contradiz tudo o que percebemos sobre ele. Alejandra evita contar ao seu pai dos abusos que têm sofrido para evitar que ele piore. Trata-se de uma demonstração de amor, que no final das contas, levará a catástrofe. Só digo que a cena final é de arrepiar, que não deixará ninguém indiferente, levando ao aplauso de alguns espectadores e a repulsa de outros, dependendo da moral e índole de cada um.




Depois de Lucía é pois um filme provocador, muito bem resolvido em sua opção técnica e de mise-en-scène, principalmente entre os adolescentes. No entanto, apesar de todo o esforço para se criar um tom de realidade, a maneira como os adolescentes se tratam soa e ao mesmo tempo não soa orgânica, percebe-se ainda influências de certos clichês, embora as atuações soem naturais. Mas este é o único detalhe que precisaria ser melhorado. O filme em geral é muito convincente e merece ser assistido. É muito relevante.  


quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

ERNEST & CÉLESTINE



Ernest & Célestine (2012). Inspirado na série de livros de Gabrielle Vincent. Direção de Stéphane Aubier, Vincent Patar e Benjamin Renner. Roteiro de Daniel Pennac. Com Lambert Wilson e Pauline Brunner.


Ernest & Célestine trata-se de uma animação infantil francesa, mas que explora questões sociais e morais por trás de seu enredo, como desigualdade de classes, miséria e preconceitos. Trata-se da amizade pouco provável entre o urso Ernest e a ratinha Célestine, visto que no enredo, os ratos e ursos têm medo uns dos outros e alimentam preconceitos com contos de fadas macabros. Ernest é um urso que está na miséria, faminto, e que rouba comida para sobreviver: pode-se compará-lo, em certos aspectos, a Jean Valjean de Os Miseráveis, sendo que Célestine representa Cosette, de quem Ernest irá tomar conta quando ela foge da perseguição de seus iguais por ser vista como uma pária da sociedade. O filme possui ainda uma ironia muito engraçada em relação um tipo de nada louvável de capitalismo, representado por duas lojas, uma de doces e a outra, de dentes, ironia esta que não vou contar: assistam por si mesmos e entendam o que digo. A única coisa que eu não gostei foi o final, achei que os problemas se resolveram de maneira muito artificial. Tá, eu sei que se trata de um filme infantil, mas do modo como ficou, a resolução apresenta-se falsa e pouco convincente. Está concorrendo ao Oscar de 2013 de melhor animação, mas provavelmente não vai ganhar, pois não possui a “magia de hollywood” de filmes como Frozen. Destaque para os traços, que são muito bonitos e delicados, pintados numa técnica que simula aquarela. E como não se apaixonar pela doce, porém enérgica Célestine, dublada de maneira tão cativante por Pauline Brunner? Enfim, vale a pena assistir.

Trailer: 

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

GISELLE pelo The Royal Ballet (2014)

   

   Para se entender melhor um ballet de repertório, deve-se ler o libretto antes. Claro que uma das características que mais atrai numa montagem específica é quando ela consegue contar a história por si mesma. No entanto, para quem quiser conhecer o enredo de Giselle, pode-se acessar o seguinte link, onde a história é contada antes de uma crítica à montagem do ballet pelo Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. A seguinte resenha, como o título já diz, refere-se a versão do The Royal Ballet, exibida nos cinemas em 27 de janeiro de 2014, estrelada por Natalia Osipova no papel de Giselle e Carlos Acosta interpretando o Duque de Albrecht. Eis o link: 
     

     Pertencendo ao repertório romântico de ballets do século XIX, juntamente com La Bayadère, Giselle é dividido em dois atos, que muito contrastam um com o outro em atmosfera. No início, somos apresentados ao Duque de Albrecht, que se finge de camponês para se aproximar de Giselle, uma camponesa humilde e encantadora, por quem se apaixona. Esta introdução é feita de maneira muito econômica e eficiente. Em seguida acompanhamos o pas de deux de Giselle e Albrecht, que é permeado por uma natureza juvenil, retratando as alegrias e angustias dos amores adolescentes. 

Amor juvenil

     Em seguida, somos apresentados aos camponeses, que bailam divertidamente. O interessante do baile de camponeses é que, em muitos casos noutros ballets, esses bailes são dançados por pessoas da corte, o que não acontece aqui. É um momento divertido, em que se expõe algumas técnicas. Quanto mais os bailarinos coadjuvantes transcendem esses momentos puramente técnicos e virtuosísticos, mais interessante o espetáculo fica. Nesta montagem, infelizmente, não senti essa transcendência. É bonito sim, mas nada que tenha me chamado a atenção. 

O baile

     Uma das coisas que realmente me deixou curioso foi o momento em que Giselle fica tão encantada com a roupa que Bathilde, a noiva de Albrecht (Giselle ainda não sabe disso). Não imaginava que Giselle fosse tão cobiçosa. Achei interessante, pois apesar de ser uma heroína romântica, que geralmente são idealizadas, esta aqui tem desvios de caráter, que em geral o romantismo tendia a esconder. Ora bolas, ela é humana. Natalia Osipova põe nesse simples gesto um tom de ingenuidade que encanta. Ela é magistral.

Cobiça, porém ingênua

     Natalia Osipova é uma das maiores bailarinas contemporâneas. E neste espetáculo, ao retratar o surto de loucura de Giselle ao descobrir que seu amado mentira sobre sua identidade e que iria se casar com aristocrata Bathilde, faz jus à sua fama. Que momento sublime e enérgico. O fato de ela morrer de ataque cardíaco soa coerente, visto que ela, em cenas anteriores, demonstrara ter problemas no coração. Ainda assim, é lamentável que ela não se suicide com a espada de Albrecht, como ocorria no roteiro original (na época em que foi lançado, o público se chocou com o suicídio de Giselle, e creio que, visto o Jovem Werther de Goethe havia causado surtos de suicídio em massa, os diretores acharam por bem modificar o libretto, mas, poxa, hoje em dia suicídio não é mais um tema tabu, a montagem atual bem que podia representá-lo, mas resolveram seguir a tradição, fazer o quê?). O legal é ver os cabelos de Giselle se soltarem sutilmente nos braços da mãe, um detalhe magnífico e simbólico, podendo significar várias coisas diferentes. E o que dizer da tensão criada na breve sequencia em que ela dança com a espada? Sensacional!! 

Surto de loucura

     Enquanto o primeiro ato do espetáculo tem um tom mais leve e simples, o segundo é permeado por uma natureza mais sombria. Giselle se torna, de repente, uma história de fantasmas, característica de uma boa história de terror do século XIX, com a ação ocorrendo em um cemitério. O túmulo de Giselle é velado por Hilarion, apaixonado por ela, e que era o arquinimigo de Albrecht. De repente, aparece o baile das Willis, espíritos de moças que morreram antes do dia do casamento, e que para se vingar, obrigam os rapazes dançarem até a exaustão. Estava curioso para saber como esse "dançar até a exaustão" seria representado, pois num ballet todos dançam até a exaustão naturalmente. Estava esperando algo incrível, similar a como a Aurora rodopia ao tocar o fuso em A Bela Adormecida. Infelizmente, achei a dança das Willis com Hilarion muito burocrática, embora gostei do modo como elas formaram o cerco. No entanto achei muito breve a sequencia, não fui convencido de que ele dançou até a exaustão, e a coreografia foi uma das mais fracas de todo o espetáculo. 

 
Ação no cemitério

Cerco das Willis a Hilarion

     No mais, a dança das Willis antes do cerco é uma coisa esplêndida, muito bonita e delicada. O tutu romântico realça essa beleza. Ainda assim, é uma delicadeza ameaçadora. Elas são pessoas vingativas, tinham mesmo que ser ameaçadoras.


Uma boa história de terror

     O pas de deux entre o fantasma de Giselle e Albrecht no segundo ato é bem diferente daquele do primeiro ato. É mais sombrio, e mais triste. É muito mais bonito e poético. E maduro. Natalia Osipova e Carlos Acosta têm uma química e energia invejáveis. São extremamente emotivos. Belíssima interpretação.

Pas de deux de amor e morte

   Giselle é um ballet simples, mas em geral cativante. Não exige cenários grandiosos, nem muitas pirotecnias, mas compensa com as belas coreografias, embora não sejam melhores que nenhuma de La Bayadère pelo Ballet da Opera de Paris em 2012 (curiosamente, Giselle tem uma história que lembra vagamente La Bayadère, principalmente no primeiro ato). Em breve resenharei este espetáculo. Apesar de pequenas escolhas desacertadas, Giselle brilha e emociona. É um espetáculo para se sentir. Não consigo ser muito racional com dança. É algo que me envolve e encanta.

     A quem se interessar, este ballet pode ser baixado aqui: 
     



     

      


  






sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Em UMBIGO SEM FUNDO, Dash Shaw trás uma bela crônica familiar contemporânea em HQ

    

     Dash Shaw, aos seus 23 anos, escreveu e desenhou um livro digno de mestre, cheio de sutilezas emocionais permeado por um toque de humor sutil porém orgânico, nesta gigantesca história em quadrinhos de 720 páginas. Trata-se de uma excelente crônica familiar. A história em si é bem simples, e em 200 páginas se poderia desenvolvê-la com início, meio e fim. Mas se assim procedesse, ele jogaria fora o que sua obra tem de mais bonito, que é a poesia das situações, a análise pormenorizada do esfacelamento familiar digna, em muitos momentos, de filmes de Ingmar Bergman (a relação de Dennis com seus pais, sua natureza questionadora, conflitiva e atormentada em busca de respostas, me fez pensar nos embates entre mãe e filha em Sonata de Outono, filme do mestre sueco), retratando a individualidade de cada ente daquela família, individualidade esta que faz com que, a medida em que cada um tenta traçar a sua história, viver sua vida, mais afastados fiquem um dos outros. Ainda assim, ao final, sentimos uma esperança de que aquela família vai ficar mais unida de algum modo a partir de então, mas essa esperança é algo que fica em nossa mente, podendo muito bem ser falsa. 
     Umbigo sem fundo conta a história da família Loony (que remete a tolo, imbecil, idiota, em inglês), composta por David (o pai), Maggie (a mãe), e seus filhos Dennis, Claire e Peter. Essa é a primeira geração da família, retratada brevemente no início da HQ de maneira muito concisa e bem humorada. O início serve como um contraponto ao restante da história, pois tem o intuito de mostrar a diferença na dinâmica familiar em duas épocas distintas (e para mostrar que a personalidade de algumas pessoas evoluem muito mais que as outras). Logo em seguida, Shaw insere na segunda geração a esposa de Dennis (Aki e seu filho, ainda bebê) e a filha de Claire (Jill). Peter ainda não possui namorada nem filhos. E então, na fase adulta, cada um em seu canto no mundo, se reúnem novamente na casa de praia da infância para que seus pais façam um comunicado: após 40 anos de casados, David e Maggie, muito idosos, resolveram se divorciar, pois não se amam mais. A partir desse motivo, Dash Shaw explora seus personagens e suas atitudes após esta bomba com um olhar analítico, mas ao mesmo tempo, emocional. As pessoas reagem de modo diferente às situações. Como você reagiria a esta notícia? Entraria em busca de respostas e motivos concretos para a atitude de seus pais, como faz Dennis? Encararia calmamente a situação, como faz Claire? Se afastaria cada vez mais, como faz Peter? 
     Ao longo das páginas, nos envolvemos nos dramas de cada um dos personagens, criamos empatia e compaixão para com eles, mesmo quando percebemos o quão ridículos e imaturos eles estão sendo. Por exemplo, cito Dennis, obcecado em busca de respostas e ridicularizado de uma maneira implícita por simplesmente não aceitar a decisão dos pais, dá uma de detetive em uma investigação sem sentido ou futuro. Então, o que temos que analisar não são as ações dele, mas como elas representam sua psicologia, os sub-textos. Eis um exemplo de um diálogo muito interessante:

"Dennis: Não tem como explicar porque não faz o menor sentido! Porque só eu me preocupo com isso? Vocês não estão nem aí!!
Claire: Dennis, você sabe que isso é assunto DELES. Nós somos adultos agora.
Peter: É, a gente não é mais criança, de graças de estar acontecendo agora e não antes.
Dennis: NÃO, NÃO. NÃO!!!! Eu tenho INVEJA das crianças com pais separados. Elas são mimadas, vão ao psicólogo. Elas PODEM ficar tristes. Todo mundo aceita, até ENCORAJAM. Mas EU NÃO POSSO ficar triste? Porque aí vocês ficam me OLHANDO e acham que estou EXAGERANDO! Vocês não percebem que tudo isto é uma merda?" 

     Em relação aos traços, o HQ é simples, não busca a estilização. No entanto, não deixa de ser minimalista. A quantidade de quadros que ele usa para retratar uma cena aparentemente sem importância, como quando Aki tenta forrar a cama, mas não consegue, ou quando Peter vai fazer sexo pela primeira vez, serve para mostrar sutilezas nas expressões faciais, nas emoções. Em outros momentos, os quadros são usados para fazer rima poético visual interessante, por exemplo, quando ele usa, no início, um quadro por página para falar sobre os tipos de areia, e outra série, no fim, sobre os tipos de água. Areia e água: dois símbolos que unem aquelas pessoas, num aspecto memorialístico.  
     Umbigo sem fundo é uma obra-prima, cujo único pecado é a escolha de Shaw de escrever cada movimento (SENTA, COÇA, ESFREGA), mesmo quando ele está bem representado no quadro, e o fato de alguns personagens exclamar "Rá" tantas vezes. Mas é uma história envolvente e tocante. Vale a pena ser lida. É um reflexo de tantas famílias esfaceladas nos dias de hoje, das pessoas cada vez mais desapegadas de suas raízes. 

sábado, 1 de fevereiro de 2014

CRÍTICA: AZUL É A COR MAIS QUENTE (LIVRO E FILME)

     
     No início de janeiro, assisti ao filme Azul é a cor mais quente, do diretor franco-tunisiano Abdellatif Kechiche, e posso dizer com grande entusiasmo que foi uma das grandes experiências cinematográficas de minha vida como espectador. A belíssima fotografia em tons azulados que acompanhou a trajetória ao longo de alguns anos de uma mulher em suas descobertas como um ser humano em busca de aceitação, de carinho e de amor, explorando uma longa mas inesquecível jornada emocional e sentimental, entrou profundamente em minha alma. É um tipo de filme que serve como arquétipo para nós mesmo em muitos aspectos, nos faz olhar no espelho como nunca antes, e a opção estética do filme, além de ser coerente com o estilo de seu diretor em seus trabalhos anteriores (falarei mais a respeito) serviu muito bem especialmente para contar essa história,o que, para quem conhecia o trabalho de Abdellatif Kechiche antes de Azul é a cor mais quente e tivesse lido a novela gráfica de Julie Maroh que inspirou o filme, foi uma grande surpresa, pois ele não é tido a sentimentalismo nem artificialismo emocionais, e as alterações que ele fez em relação ao trabalho de Maroh são louváveis nesse aspecto.
     O filme e o livro conta basicamente a mesma história: Clémentine/Adèle (no livro e no filme, respectivamente) é uma adolescente que está no primeiro ano do ensino médio, e tem a necessidade de ser aceita pelos colegas. Esse é o início da história, que mostra a insegurança e a turbilhão emocional de todo adolescente. No caso, essa aceitação traria uma suposta estabilidade em seu meio social, mas isso significa seguir certos padrões de comportamento, e isso inclui - mais no livro que no filme - seguir uma opção sexual "saudável". Quando Clémentine/Adèle cruza com Emma no meio da rua, e depois de a reencontrar num bar gay (justamente em outro momento de descoberta para a personagem - a atriz se mostrou soberba em retratar a curiosidade reprimida de Adèle se desabrochando), e se envolver com ela, essa estabilidade cai por terra. O restante da história retrata o desenvolvimento do relacionamento de ambas, com momentos de altos e baixos. Um dos retratos mais verdadeiros sobre o amor.
     E aqui seguirei fazendo uma análise comparativa do filme e dos quadrinhos: percebe-se neste último, um tom panfletário que não me atraiu muito. Ao retratar o preconceito dos pais de Clémentine, Julie Maroh carregou em frases e textos expositivos, o que na minha visão, é deselegante e empobrece um pouco a história. As conversas de Emma e Clémentine sobre a importância do amor antes de qualquer preconceito, etc, soam didáticas (mas ainda assim são conversas bonitas). Já no filme, o tom é outro. Não se mostra qualquer tipo de preconceito, exceto numa cena da escola, em que uma amiga a ataca após descobrir sua sexualidade; no filme o motivo da briga tem uma diferença fundamental: enquanto nos quadrinhos a briga ocorre simplesmente por que se descobre que Clémentine é homossexual, no filme a briga ocorre por conta de que esta, por ser homossexual, poderia ter olhado para esta amiga com olhos sedentos nos momentos em que haviam dormido juntas. Essa pequena mudança tem por mérito tirar a panfletagem e qualquer resquício de maniqueísmo. Enquanto no livro a maior parte das adversidades e conflitos decorre por conta da tensão psicológica de Clémentine sobre si mesma em relação a descoberta de sua sexualidade, no filme os conflitos psicológicos ocorrem por conta da relação de Adèle e Emma, suas conversas (que se tornam bem mais interessantes e mais amplas que nos quadrinhos), uma tensão que surge por causa de uma certa incompatibilidade entre as duas no que concerne planos para o futuro (uma é mais ambiciosa que a outra, tem mais planos ousados) e até mesmo diferenças de conhecimento culturais, que traz até mesmo um tom de deslocamento, como quando Emma explica obras de arte e Adèle não sabe o que dizer. 
     O objetivo de Kechiche não foi fazer um filme sobre um romance gay, mas sim sobre o amor, independente de hetero ou homossexual. No livro, Emma fala: "se eu fosse um homem, Clémentine me amaria do mesmo jeito". No filme, ela não diz essa frase, mas Kechiche a explora como conceito, dando sua própria visão a respeito, nunca com diálogos expositivos, mas com as ações dos personagens e sub-texto dos diálogos, muitas vezes questionando-a até. 
      O filme é incrível em vários sentidos, pois tridimencionaliza os personagens, os explora como seres que não apenas amam, mas trabalham, comem, se relacionam com amigos, se divertem, dançam. Tudo isso é filmado de uma maneira crua, mas ao mesmo tempo é essa crueza, esse realismo, que enriquece a análise psicológica dos personagens. Cenas como Adèle e Emma fazendo sexo (as polêmicas cenas) de maneira tão intensa e carnal, Adèle comendo de boca aberta, se melando e sem o mínimo glamour, Adèle andando no meio da rua chorando e o escarro que lhe sai pelo nariz, que mela sua face, a cena em que ela come chocolate num momento triste, todas essas cenas são tão verdadeiras, mostram o drama verdadeiro da alma, e, essencialmente, têm uma coerência interna na opção estética do diretor. O drama de Julie Maroh, se explorados pelo filme, soaria piegas e clichê. O filme se tornou bem mais que simplesmente a "história de amor de Adèle e Emma", e isso justifica a mudança de título, que no original é La vie d'Adèle, que apesar de menos bonito que o título mais famoso, é mais coerente com a visão da história que Kechiche quis passar, pois ali está realmente retratado o desenvolvimento emocional de Adèle, o amor amoroso e o sexo fazem apenas parte destas descobertas. O amor verdadeiro nunca foi tão realisticamente bem explorado como ocorre aqui. Por isso este filme já pode ser considerado um grande clássico. Ele já mora em meu coração. 
     Quanto ao quadrinho, eu gostei também, mas é como disse, tem um drama artificial pela estrutura de como a história é contada (a cena em que Emma chega na casa de Clémentine lembra muito a cena em que um dos cowboys gays de Brokeback Mountain visita a casa dos pais de seu parceiro após a morte deste), e ao menos, uma cena muito ridícula, que é quando os pais de Clémentine descobrem a relação das duas. Agora, o que chama a atenção são os traços. Nossa, parece pintura, é incrível. O amor é muito bem retratado, é de uma sensibilidade inesquecível. O que eu tinha a mais para falar sobre o quadrinho já falei em outros momentos do texto. 
     Espero que minha resenha contribua para que vocês corram atrás dessa história, é uma grande aula de educação sentimental, e percepção sentimental é o que mais precisamos neste mundo cada vez mais difícil, introspectivo e egoísta.