domingo, 6 de setembro de 2015

A MENINA SUBMERSA: MEMÓRIAS, de Caitlín R. Kiernan




"'Vou escrever uma história de fantasmas agora', ela datilografou.
'Uma história de fantasmas com uma sereia e um lobo', datilografou mais uma vez."

Como diz Caitlín R. Kiernan numa das epígrafes do livro A Menina Submersa, "este livro é o que é, o que significa que ele pode não ser o livro que você espera que seja". E de fato, o livro não foi o que eu imaginava. No final das contas, foi muito melhor. Sem dúvida uma das narrativas mais inovadoras que pude ler esse ano no que concerne à estruturação. "As histórias mudam a sua própria forma", diz outra epígrafe, e foi exatamente isso que senti. Esse livro se metamorfoseia constantemente, como uma borboleta alterando as cores de suas asas. 



Mas então, o que eu imaginava do livro? Quais eram minhas expectativas iniciais?

A resposta é: deixei-me enganar pela capa da orelha do livro. Passei as 320 páginas esperando a tal história de terror, mas o que encontrei foi uma história de amor, uma história de amor meio que às avessas, com fantasmas, sereias e lobos. O livro é narrado e protagonizado por India Morgan Phelps, ou Imp, uma garota diagnosticada com esquizofrenia paranoica, uma doença que muito me chama a atenção desde que vi, quando criança, o filme Uma Mente Brilhante (A Beautiful Mind, de Ron Howard, 2001). Nesse aspecto, eu já esperava uma narrativa densa, intrigante e fora do comum. E nesse aspecto minhas expectativas se mantiveram sólidas. O que achei interessante, em se tratando da esquizofrenia paranoica, foi o fato de Imp não ignorar seus surtos de loucura. Ela mesma foi ao hospital psiquiátrico, aceitou seu diagnóstico e da maneira que pôde, tratou dele. O que ela fala nesse sentido é bem interessante:

"Não tinha percebido que também sou louca - e que provavelmente sempre havia sido - até alguns anos depois da morte de Rosemary. É um mito que pessoas loucas não saibam que são loucas. Sem dúvida, muitos de nós são capazes de epifanias e introspecção como qualquer outra pessoa, talvez até mais. Suspeito que passamos muito mais tempo pensando sobre nossos pensamentos do que as pessoas sãs. Ainda assim, simplesmente não tinha me ocorrido que o modo como eu via o mundo significava que eu herdara a 'Maldição da Família Phelps' (para citar minha tia Elaine, que tem uma queda por tiradas dramáticas)".


Seria muito interessante fazer pesquisas com esses pacientes esquizofrênicos e com outros transtornos psiquiátricos a respeito da consciência em relação às doenças que os acometem.  



A história é de certa maneira a jornada pessoal de Imp em sobreviver à Maldição da Família Phelps, e isso trás um significado muito bonito, pois trata-se da luta para não cair nas lábias da sereia: uma luta constante contra o impulso suicida meio que incontrolável em momentos de surtos psicóticos. Sim, é de fato uma história de fantasmas, sereias e lobos. Um dos aspectos mais intrigantes desse livro é que Imp subverte as noções preconcebidas que temos a respeito desses seres fantásticos (tudo bem, um lobo não é um ser fantástico, mas vamos estabelecer que é no contexto dos contos de fadas), noções essas desenvolvidas e difundidas ao longo dos séculos pela cultura popular nos mais variados meios de expressão e presente no imaginário coletivo, dando-lhes uma concepção muito mais real, palpável a nós, seus leitores, e por isso muito mais assustadores que os fantasmas protoplasmáticos. Imp materializa seus fantasmas interiores e nos instiga a fazer o mesmo. Ao longo da leitura, percebi que muitos de meus fantasmas são terrivelmente aflitivos, mas é necessário e possível uma mudança de perspectiva para torná-los fantasminhas camaradas, mas para isso é preciso energia mental. Temos que tentar ver o mundo, os fatos e as pessoas sobre as mais diversas perspectivas. E essa é a jornada de Imp, seu propósito. 



"Fantasmas são essas lembranças fortes demais para serem esquecidas, ecoando ao longo dos anos e se recusando a serem apagadas pelo tempo; (...) uma característica dos fantasmas, muito importante: você tem de tomar cuidado porque assombrações são contagiosas. Assombrações são (...) transmissão de ideias perniciosas, doenças contagiosas sociais que não precisam de hospedeiro viral nem bacteriano e são transmitidas de milhares de modos diferentes. Um livro, um poema, uma canção, uma história de ninar, o suicídio da avó, a coreografia de uma dança, alguns quadros de filme, um diagnóstico de esquizofrenia, o tombo fatal de cima de um cavalo, uma fotografia desbotada ou uma história que você conta para sua filha. Ou um quadro pendurado numa parede".



O que é listado no trecho acima são os fantasmas de Imp, e é incrível como esses elementos podem de fato incomodar bastante. Um desses fantasmas é o quadro A Menina Submersa, do pintor (fictício) Philip George Saltonstall, que dá título ao livro. A narrativa é repleta de onirismo, criando uma atmosfera única através de uma escrita que considero muito poética (há quem vá discordar de mim!), uma poesia intimista não preocupada com convenções: obscura e sombria, doce e amorosa, terna e agressiva, racional e delirante, em resumo: uma narrativa feita de ondas oscilatórias, da natureza metamorfoseante das lagartas/borboletas... 



Mas por baixo da atmosfera densa criada, é contada uma belíssima história de pessoas humanas conflituosas e reais. A relação de Imp com sua namorada transexual e com a sereia/lobo Eva Cunning é muito bem desenvolvida em sua propositada incompletude e incoerência. Na orelha do livro se diz que o livro muitas vezes remete à atmosfera do filme Azul é a Cor Mais Quente (La Vie d'Adèle, de Abdellatif Kechiche, 2013), e não se poderia ter sido mais exato, mas também me veio a cabeça filmes como Piquenique na Montanha Misteriosa (Picnic at Hanging Rock , de Peter Weir, 1975) e Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive, de David Lynch, 2001), ambos muito bem recomendados por mim e que estão entre meus favoritos.

A narrativa de Imp é truncada, desconexa, incoerente e duvidosa. Ela insere no meio de seu texto poesias, recortes de jornal e de catálogos de museus, referências a livros e músicas, fatos históricos (L'Inconnue de la Seine e os suicídios na floresta japonesa Aokigahara) e contos dela mesma (geniais, diga-se de passagem, visto que temos que nos esforçar para compreender traços da personalidade da própria Imp nos personagens que cria). Ela não é uma narradora comum, linear. Ela não pretende contar uma história com início e com fim, pois em seu ponto de vista

"Nenhuma história tem começo e nenhuma história tem fim. Começos e fins podem ser entendidos como algo que serve a um propósito, a uma intenção momentânea e provisória, mas são, em sua natureza fundamental, arbitrários  e existem apenas como uma ideia conveniente na mente humana. As vidas são confusas e, quando começamos a relacioná-las, ou relacionar partes delas, não podemos mais discernir os momentos precisos e objetivos de quando certo evento começou. Todos os começos são arbitrários. (...) Não estou disposta a acalmar a Tirania do Roteiro. As vidas não se desenvolvem em roteiros ordenados e o pior tipo de artifício é insistir que as histórias que contamos, para nós mesmos e uns para os outros, devem ser forçadas a se conformar ao roteiro, narrativas lineares de A a Z, três atos,  os ditames de Aristóteles, ação elevada e clímax e ação decadente e, em especial, o artifício da resolução. Não vejo muita resolução no mundo; nascemos, vivemos e morremos, e no fim disso há somente uma confusão feia de negócios inacabados".



Talvez a pretensão do livro de ser uma história sem começo nem fim tenha sido frustrada, pois na verdade tem uma certa lógica interna, e sabe, de certa maneira, a direção em que está seguindo e a história que quer contar. Mas é interessante na abordagem de que fatos ocorridos a terceiros desconhecidos no passado podem influenciar nas nossas vidas presentes. Lembrei-me nesse aspecto de A Terra Inteira e o Céu Infinito, de Ruth Ozeki, já comentado neste blog. Mas o diário de Imp ao final do livro, depois do fim da narrativa, demonstra que a vida segue imprevisível e com um fim desconhecido. 

"Cada vez mais começo a entender como as histórias de Saltonstall e de A Menina Submersa são parte integrante da minha vida (...), mesmo que eu não afirme que seja verdadeiramente o início das coisas que aconteceram. Não em sentido objetivo. Se eu fizesse isso, estaria fugindo da questão. Será que o início foi a primeira vez que vi o quadro, no meu décimo primeiro aniversário, ou foi a criação de Saltonstall, em 1898? Ou seria melhor começar com a construção da represa, em 1886? Instintivamente continuei procurando por esse tipo de começo..."



Um reflexo da dicotomia paranóia/racionalidade da narradora faz ela tomar para si o conceito desenvolvido por Ursula K. Le Guin, autora do excelente A Mão Esquerda da Escuridão, de verdadeiro e real. Verdadeiro no caso é tudo o que se passa na cabeça da narradora, todas a imagens que ela vê, mas que ela sabe que não é real pela lógica. Lembrei-me de John Nash, em Uma Mente Brilhante, que reconhece a impossibilidade da existência de seu amigo mais íntimo e da sobrinha deste pelo não envelhecimento da menininha. Então me pergunto: seriam todos os esquizofrênicos capazes de procurar padrões que denunciem a irrealidade da sua alucinação? No caso, para Imp, há os fatos verdadeiros, mas não reais, e os fatos verdadeiros e reais.



A partir desses conceitos de verdade e de realidade, começo aqui a fazer minhas ressalvas (pois nem tudo são flores e não há perfeição nesse mundo!). Acredito que essa lógica tenha sido um ponto forte do livro - visto que conferiu uma densidade surpreendente à narrativa sem que esta soe verborrágica (com excessão do insólito capítulo 7, narrado durante um surto psicótico em um fluxo de consciência genial); mas também foi o seu ponto fraco, quando pensamos que uma narradora suspeita que não sabe que é suspeita é muito mais instigante, principalmente para um amante da literatura de William Faulkner como eu (vem na minha cabeça a narração da Srta. Rosa Coldfield em Absalão, Absalão!, e seu ódio contra Thomas Supten, o protagonista desse livro, cujo ponto de vista nunca ficamos sabendo por vias diretas). No caso, Imp narra fatos para depois corrigi-los e acrescentar camadas, e depois desmistificá-los e então compreender que eles nunca existiram. Claro que é muito interessante, e é fiel com a característica da esquizofrenia dela, mas infelizmente é uma via de mão dupla. A maior força do livro é sua maior fraqueza também. Mas no panorama geral da obra, isso é um pecadilho dessa obra-prima.  



A Menina Submersa é um livro que surpreende. Não é um livro fácil. Denso, misterioso, inconcluso, onírico, impetuoso, lúgubre, árido, poético... são tantos adjetivos possíveis. No futuro espero relê-lo quando compreender muito mais a esquizofrenia, assim como pretendo reler O Homem do Subsolo, de Dostoievski, quando tiver uma compreensão maior do transtorno obsessivo compulsivo. É um livro que ensina que temos que tentar compreender as verdades por trás da mente dessas pessoas com um psiquismo diferente, ao invés de criticá-los por não compreenderem a irrealidade das verdades que para eles são inerentes. 



Enfim, recomendo fortemente. Um livro para se ir lendo aos poucos. Adentrar na mente de Imp e compreendê-la exige paciência e dedicação, mas é recompensador. 

PS: No final do livro ocorre uma das cenas de sexo mais lindas e originais que já li. Se nada do que escrevi acima atiçou a sua curiosidade, talvez esse detalhe em particular possa servir de incentivo.  

domingo, 15 de fevereiro de 2015

RESENHA: O PINTASSILGO, de Donna Tartt

   

     Enquanto lia a última obra (a terceira em três décadas) da escritora norte-americana Donna Taart intitulado O Pintassilgo e lançada ano passado pela Companhia das Letras, fui sentindo a necessidade de mudar a estrutura de minhas críticas; ao longo da leitura, minha maneira de encarar o livro oscilou como raramente já acontecera antes, de modo que, terminada cada uma das 721 páginas do calhamaço, ainda não sei muito o que pensar dele, tampouco saberia lhe taxar uma simples nota numérica (aliás, cada vez mais acredito que essa maneira de avaliar uma obra de arte, sem defender o porque, é muito simplória e superficial, que muitas vezes serve apenas para dar vazão à uma arrogância crítica não muito intelectual). Espero que, escrevendo o texto que se segue, minhas reflexões se tornem mais soltas e abrangentes e estejam aptas a captar aspectos não percebidos durante a leitura, como aqueles raciocínios que só nos vêm quando forçamos nossa mente. Não estou querendo dizer que o livro seja genial ou complexo demais, pois não é; em muitos aspectos até deixa muito a desejar, e apesar de ser enorme, no final das contas é incompleto e superficial emocionalmente, cheios de vácuos nesse sentido. No entanto, este filho de Donna Taart contém alguns  outros aspectos muito interessantes e bem trabalhados. O equívoco e a genialidade andam lado a lado de mãos dadas aqui. Eu consigo perceber esses mencionados aspectos isoladamente, e por isso mesmo não estou conseguindo deter minha análise diante do quadro completo.

    Vamos começar pelo enredo, bastante simples. Donna Taart, em entrevista, disse que o que a motivou a escrever este livro foi uma reflexão que teve a respeito das obras de arte que se perdem ao longo da história por motivos fúteis. Eu mesmo às vezes fico me lembrando de peças incríveis para sempre perdidas do museu de Bagdá, ou nos pergaminhos da Biblioteca de Alexandria. É um pensamento que é bem colocado no comentário de Audrey Decker direcionado a seu filho Theodore, protagonista e narrador, bem no início do livro, em que ela comenta que "é deprimente como perdemos as coisas sem necessidade. Por puro descuido. Incêndios, guerras. O Partenon, usado como depósito de munição. Acho que o que quer que conseguimos salvar da história é um milagre". Então acontece uma coisa espantosa: uma explosão desencadeada por um atentado terrorista dentro do museu que mata a jovem mãe do pequeno Theodore e que só não o mata igualmente por um milagre. Assim, a morte da mãe representa um quadro para sempre perdido, mas que estará sempre presente no coração do jovem Theo, como a cópia de uma obra de arte capaz de evocar tanta emoção quanto a original (particularmente, eu gostei do comentário, mas achei forçado acontecer esse atentado depois de uma observação como esta, como que para dar um efeito dramático eficaz e definir uma temática, algo que Donna Taart evita ao longo do livro; curiosidade, pois é sempre bom fazermos paralelos entre as obras de arte e a nossa vida, há alguns anos, eu e uma amiga estávamos andando na rua de noite numa região perigosa, e quando comentávamos sobre os riscos de sermos assaltados, mais de um revólver foi apontado para a nossa cabeça segundos depois. Não, não acredito que induzi os astros a conspirarem contra mim pelo meu pensamento negativo, se por acaso algum leitor de O Segredo ler essas minhas palavras. De qualquer modo, eu estava num lugar em que o risco de assalto era grande, ao paço que a probabilidade de o museu onde Audrey e Theo estavam sofrer um ataque terrorista era mínima). Ao mesmo tempo, um senhor idoso ferido no atentado (Welty) induz Theo a resgatar o quadro O Pintassilgo (do qual falarei abaixo) e lhe dá um anel que o direciona a Hobie, um restaurador de móveis antigos de quem Welty era sócio, encontro esse que definirá uma grande parte do futuro do jovem (mas do qual não comentarei). No entanto, o medo de Theo de ser repreendido por "roubar" o quadro (em sua concepção seria punido e preso) faz ele guardar o segredo. O Pintassilgo, portanto, passa a ser uma obra-prima declarada perdida no atentado, e a cada ano que passa, Theo é invadido por duas espécies crescentes de sentimento de culpa, pela perda da mãe (pois não estariam no museu se não fosse problemas provocados por Theo) e pelo quadro. Tudo isso é narrado por uma pessoa claramente instável psicologicamente.

Carel Fabritius. O Pintassilgo.

     E esse é um dos pontos fracos do livro. O sentimento de culpa de Theo chega a irritar um pouco. Sua autoimolação é cansativa. Juro que me esforcei para colocar-me no ponto de vista do menino, de encarar a narração como obra de um rapaz com síndrome do transtorno pós traumático, mas é ruim demais sentir pena de alguém.

     Para mim os melhores momentos estavam quando Theo falava e interagia com os personagens ao seu redor, pessoas normais em situações corriqueiras, e gostei de ver como os detalhes psicológicos destes personagens foram inseridos, um aspecto que me fez reavaliar o livro de maneira mais positiva. Pois num momento (no início), temos um conhecimento muito superficial desses personagens (o que é natural se tratando do ponto de vista de uma criança traumatizada), mas anos depois, numa série de diálogos (o que acho muito apropriado; me lembrou muito os princípios narrativos de William Faulkner de só se saber sobre terceiros que não temos contato constante através do ponto de vista de uma outra pessoa), conhecemos melhor alguns dos personagens, embora alguns não sejam tão importantes para o andar da história (como é a história do senhor Barbour), e isso é muito bom. A vida não segue um roteiro pré-estabelecido, ela como um todo não está delineada como uma trama fictícia com início, meio e fim (algo que a autora aprendeu com Proust, a psicologia inserida e moldada no espaço), mas com inícios, meios e fins e outros inícios que se mesclam a outros inícios ou a outros fins e assim por diante. A vida é ramificada, assim como as relações interpessoais e os nossos momentos. A vida ramifica-se tanto para o futuro como provém de ramificações passadas.

Egbert van der Poel. Incêndio de Delft

     Outro ponto positivo do livro é a naturalidade dos diálogos. Não gosto de diálogos expositivos demais, a não ser que o diálogo seja narrativo. Muitas vezes, Theo fala em monossílabos. Isso foi criticado por algumas pessoas, mas o fato é que na maioria das vezes ele não tinha realmente nada para dizer. Falar por pura conveniência com qualquer pessoa, como fazem muitos dos personagens de Jane Austen, não faz parte de Theo e da maior parte da sociedade. Os diálogos no meio dos delírios com drogas pesadas em sua juventude transviada com Boris (seu melhor amigo no segundo ato da história) realmente parecem delirantes (lembrei-me do filme O Homem Duplo, de Richard Linklater).

     Além disso, é admirável perceber a vida própria dos personagens secundários. Por vezes, até "figurantes" se mostram complexos. Inclusive, em alguns momentos, eu pensava: "nossa, o Theo é um coadjuvante nessa situação, e o personagem principal não sabemos o que anda fazendo". Isso eu aplaudo. Genial.

    No entanto, é frustrante terminarmos o livro e sentirmos que pouco sabemos sobre a mente de seu protagonista. As vezes isso é um recurso para se criar uma aura mística sobre um personagem (de novo me referindo a Faulkner), mas aqui o misticismo sobre Theo não funciona pois a narrativa é desenvolvida pelo próprio, além de que ele faz questão de só nos mostrar seus pontos fracos, se tornando apenas um personagem vazio envolto em tristeza. Muitas coisas acontecem ao seu redor e ele se mantém passivo. Por um lado isso é irritante, mas por outro lado, realista.

Egbert van der Poel. Incêndio de Delft.


     Alguns críticos compararam o estilo de Donna Taart a Oscar Wilde. Só se for pela elegância no trato do texto, Esse é o grande ponto positivo do livro, o texto como forma é uma delícia, as metáforas são muito argutas e as descrições revelam uma escritora com muita capacidade técnica. Mas além desses elementos, Wilde se mostra presente no fato de que ele era dado a "moral da história" presente nas fábulas de Esopo e La Fontaine. O Pintassilgo também tem uma, e não vou contar qual é, apenas criticá-la: é uma moral muito óbvia e clichê, ainda que eficiente aos propósitos do livro.


     Até agora me concentrei nos aspectos técnicos do livro, mas não falei na questão de que o quadro O Pintassilgo, de Carel Fabritius, que inspirou o título, é um sobrevivente. Fabritius foi um pintor holandês discípulo de Rembrandt e mestre de Vermeer. Em 1654, o armazem de pólvoras da cidade de Delft explode, destruindo o bairro do artista num grande incêndio (outro mestre holandês daquela época, Egbert van de Poel, enlouquecido pelo incêndio de Delft, pintou variadas versões dessa catástrofe). Seu ateliê e a maior parte de suas obras foram destruídas (apenas 12 sobreviveram, além do perecimento do próprio artista aos 32 anos). Assim, percebe-se a correlação desse fato com a temática do livro. Não há sutileza nisso. Essas coincidências me soam antinaturais demais, e essa é uma de minhas maiores críticas a essa obra, que se pretende ser realista, embora entenda que tudo isso definirá a vida do narrador protagonista e lhe trará uma carga simbólica significativa. Assim como o quadro, Theo é o sobrevivente. Seria assim Theo o próprio Pintassilgo, preso nas patas por uma corrente (seria essa corrente autoinfligida ou deveríamos culpar os seus traumas nunca superados pela explosão) e tendo por destino a solidão?          


Donna Tartt.


     PS 1: Aqui vai um texto e entrevista muito interessantes sobre a destruição dos patrimônios culturais da humanidade no Iraque. Quem deveria responder por esses crimes em tempos de guerra? Óbvio que o debate se aplica a qualquer caso em que haja destruições desse tipo.

http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2003/jusp640/pag0607.htm