domingo, 22 de dezembro de 2013

CRÍTICA: "EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO, VOLUME 1 (NO CAMINHO DE SWANN), DE MARCEL PROUST

   
     Não sei porque não fiz resenha desse livro ainda. Talvez porque qualquer coisa que eu vier a escrever aqui não seja digno de uma única linha sequer do que Proust escreveu. Este é, sem sombra de dúvida, o livro mais perfeito que já li, tanto no sentido puramente técnico, como no que se refere à emoção contida ao longo de suas 500 páginas (claro, refiro-me ao primeiro volume).  
     Como não se encantar com a beleza do tema proposto por Proust, que dá nome ao próprio livro, ou seja, a busca pelo tempo que já se foi, que não pode voltar atrás, mas que nos deixa lembranças profundas em nossos corações? Proust analisa, com uma profundidade única, o que há na situação mais que banal, evocando as lembranças involuntárias. Podemos usar como exemplo o caso de um amor platônico que nunca se concretizou por pura timidez de ambas as partes, mas que marcou as descobertas do amor na juventude, e várias das associações que fazemos com esse período mágico, como por exemplo, as músicas que associamos à pessoa amada. Ou as reminiscencias dos sabores de refeições que nossa mães e avós preparavam ao jantar. O que aconteceria se depois de tantos anos, quando nem mais pensássemos no passado, nos deparássemos com essas músicas ou refeições? Talvez nós, que somos jovens, não tenhamos tanta sensibilidade para entender o que Proust nos está a mostrar, pois nosso passado ainda está próximo de nosso presente, mas o tempo correrá logo, e as memórias involuntárias virão. Não é a toa que esse tipo de memória seja muitas vezes designada de memória proustiana, visto a destreza com que o autor soube explorar nossos sentimentos.
      Proust escrevia como um bicho-da-seda produz a seda, continuamente, quase que sem interrupções,  ao longo de frases e orações enormes, num fluxo constante de pensamentos, em que até mesmo os comentários e descrições são minuciosos, fruto da memória que o autor tem do que ele está narrando, e não descrições de um tempo presente. Ou seja, ele reflete, com toda a experiência de vida ao longo dos anos, sobre tudo o que descreve. Mas diferentemente de descrições que vemos em autores da escola realista, tal qual Eça de Queirós, a descrição desse livro é de uma poeticidade, de uma singeleza cativante, ainda que não tenha nenhum traço que remeta ao romantismo, sendo portanto mais apropriado classificá-lo, só para fins didáticos, como uma obra impressionista, sendo as impressões pessoais a respeito de tudo o que guia a obra. Como exemplo, a descrição do narrador, relembrando sua juventude, a respeito de Méseglise (o caminho de Swann) antes de ver Gilberte, seu amor de infância, e como por conta disso aquele ambiente se tornou tão precioso em sua memória.
      Quanto a técnica do fluxo de pensamentos, vários autores a usaram, sendo a mais famosa entre nós Clarisse Lispector. Acontece que Proust soube utilizá-la como ninguém. Seu pensamento contínuo surpreendentemente não foge nunca do foco da narrativa, não perde a coerência, e isso é muito difícil, visto a dimensão da obra. Quem adora Clarisse e nunca leu Proust não sabem o que estão perdendo, apesar do intimismo da brasileira ser bem mais acentuado, mas ao mesmo tempo, confuso.   
       Este não é um livro em que a narrativa e enredo seja o mais importante; como dito antes, é uma obra a respeito da memória e por consequência, do pensamento. Mas não só isso: é uma grande obra sobre a passagem do tempo e seus efeitos na vida em geral, as mudanças que ele traz, tanto mudanças arquitetônicas (tem uma passagem curiosa que remete ao ditado popular Água mole em pedra dura tanto bate até que fura, a respeito de uma fonte batismal da igreja de Combray), como também na vida das pessoas, no que tange status sociais, personalidade e pensamentos. Um personagem influente numa época numa outra não mais o será, assim como o contrário ocorre. Isso nos mostra a inutilidade de julgar os outros. Nunca sabemos o que o futuro nos aguarda. E não adianta nos vangloriarmos ou nos desprezarmos pelo que somos hoje. Nada é estático.
     Além disso tudo, o livro é um reflexo da modificação da vida social. Adentramos no meio da alta nobreza francesa e da burguesia ascendente à luz da segunda fase da revolução industrial, e percebemos seus costumes, suas hipocrisias, seus preconceitos, e além de tudo, a superficialidade e a ociosidade da grande sociedade. O livro nos faz sentir o tédio que os personagens sentem na pele, e isso é um elogio. Além disso, nos deleitamos com a sensibilidade de Proust ao não transformar o retrato que está expondo numa caricatura: desvendamos um humanismo muito grande dentro de corações fúteis, e isso é fantástico. Sua obra não é de crítica e denúncia social, como as obras do realismo, mas antes de uma apreciação de um quadro pontilhado. Proust jamais toma partido de coisa alguma, e isso é ótimo no caso de um romance. Um romance se torna mais completo quando não sabemos que ideais e que personagem ou grupo de personagens o autor se identifica (por isso que as obras com teor panfletário no geral são um tremendo pé no saco).
     Em Busca do Tempo Perdido foi dividido em 7 volumes. Esta resenha se refere ao volume 1, denominado No Caminho de Swann. O título se refere aos dois caminhos que existem, a partir da residência do narrador e herói do romance - Combray. De um lado, há o caminho que vai dar para as terras do Senhor de Guermantes, que será melhor explorado no terceiro volume, e Méseglise, que é o Caminho de Swann. Charles Swann é um personagem sofisticado e elegante que exercerá uma longa influência no narrador ao longo da narrativa. Neste primeiro volume, que retrata a infância do herói do romance, somos apresentados ao grande mote de todos os volumes, que é sua jornada em busca de se tornar um escritor. Swann sonhando em escrever uma obra crítica a respeito do pintor holandês Vermeer, porém, não conseguindo ir nunca em frente em seus intentos, por puro tédio e ociosidade, exercendo sobre Marcel (o narrador, que não é Marcel Proust, apesar de a obra ter um grande tom autobiográfico) uma influencia negativa do qual este tem que lutar contra, para que possa realizar seu sonho. Ao mesmo tempo, somos apresentados a Gilberte, a filha de Swann com Odette de Crécy (cuja história será explorada na segunda parte do primeiro volume, numa única parte dos 7 volumes em que há uma narração em terceira pessoa - mas que ainda percebemos ser uma narrativa feita por Marcel por menções a seu avô - denominado Um amor de Swann), que se mostra como a primeira paixão do narrador. As descrições sobre os amores juvenis, ainda que platônicos muitas vezes, estão entre algumas das mais belas passagens do romance. Se alguém compreendeu a natureza do amor, este foi Proust. Na verdade, não tem um tipo sentimento e de sensação que Proust não soube analisar com profundidade magistral. Pois este livro, antes de tudo, é um livro que nos faz ter sensações as mais variadas, indo da mais pura alegria a uma grande tristeza, indo do puro encanto por vislumbrar a luz do dia a mais terrível opressão por se deixar corromper por um amor muitas vezes sem sentido, como no caso de Swann, um homem refinado, que se apaixona por Odette de Créci, que nada tem de brilhante, além de ser uma mulher fútil e de passado suspeito. Quando terminamos a narrativa, pensei que eu mesmo era Swann. Swann somos todos nós.
        Ah, tem-se muito a se falar de Proust, e eu bem que queria me deter em cada detalhe da obra, mas são tantos... Proust, ao nos transportar a esse turbilhão de pensamentos, visões críticas, vislumbre, encantamento, ao nos incentivar a encarar um olhar único sobre a infância, nos envolve, transforma sua história em nossa própria história, transformando o EU em NÓS, compartilha o que há de mais bonito no coração humano: o amor. Só posso dizer que se há um livro que merece ser lido e relido, é este. 

sábado, 14 de dezembro de 2013

CRÍTICA: "CONTATO" DE CARL SAGAN


       À medida em que fui lendo o livro Contato, de Carl Sagan, minhas reações foram as mais diversas possíveis. Agora, terminada a leitura, não sei dizer se gostei ou não do que li. Explico, resumidamente, o que desenvolverei ao longo da resenha: Contato é um livro cheio de aspectos científicos que só os grandes escritores de aventura e ficção científica sabem traduzir para a literatura ficcional com devida verossimilhança, e nisso o livro é fantástico; no entanto, não consegui me aproximar de nenhum personagem em especial, justamente devido à excessiva linguagem científica, que acabou por ofuscar os dramas pessoais de cada personagem.
     O início é a parte mais doce e poética de todo o livro, em que acompanhamos o desenvolvimento intelectual da pequena Ellie Arroway, que através de suas travessuras infantis, acaba descobrindo o universo fascinante dos números transcendentais, e com isso se apaixonando pela matemática, que acabará por leva-la ao estudo da astronomia e ao desenvolvimento de uma personalidade extremamente cética e pragmática. A cena em que ela está deitada ao chão segurando a terra com força por causa de sua sensação de conseguir captar o movimento da terra é muito bonita e singela. Em sua infância também ela lê a bíblia de cabo a rabo e cria uma opinião própria, captando as contradições do “livro sagrado”.
     E este é o tema que permeará todo o livro: o embate entre a ciência e a religião, que chega ao estopim a partir da polêmica de uma mensagem captada por radiotelescópios do mundo inteiro, trazendo uma mensagem científica que revela o contato entre espécies inteligentes extraterrestres. Ou será que é o contato do Criador para com suas criaturas? Ainda assim, achei que esse aspecto foi mal explorado. Os personagens nunca chegam a uma ideia concreta. Claro, eu compreendo o autor: para esse tipo de questão, não existem fórmulas nem precisão, então não se pode chegar a uma ideia concreta. O problema é que muitos diálogos ficam em aberto, como o diálogo de Ellie com Palmer Joss em um museu, interrompido por um guarda. Achei que o autor forçou a barra nesse sentido, como se não soubesse que fim dar a uma cena e a um diálogo, simplesmente o interrompa.

     
Filme de 1997 inspirado no livro. Grande filme, quase se tornou uma obra-prima do cinema

     O que me agradou bastante no livro, como já disse, foi o aspecto científico. Eu gosto de aprender coisas novas. Aprendi sobre os radiotelescópios, como eles funcionam e pesquisas relacionadas à melhoria de seus receptores; alguns aspectos de física em geral, além da história da ciência e de história geral, como a vida de um guerreiro ambicioso chamado Qin que deu seu nome ao país China (Qin). O livro também trás alguns conceitos filosóficos, como  o Numinoso, termo cunhado por Rudolf Otto para designar o estado de espírito espiritualizado, mas não necessariamente por uma crença num ser divino. Um ator num palco de teatro quando totalmente entregue a seu personagem, de certa maneira sente o numinoso, pois se acha transubstanciado, por exemplo. Reflexões sobre a vida e a morte é um dos temas do capítulo Gilgamesh, e é algo que merece ser relido.
     O problema do livro, como disse, são os personagens, que apesar de serem interessantes, são distantes. O relacionamento de Ellie com sua mãe e o drama que Carl Sagan tenta desenvolver pelo distanciamento das duas não importa muito, melhor teria sido se sua mãe tivesse morrido no início do romance. Ainda assim, não tem como não se encantar pela personalidade forte de Ellie. O problema é que só vez por outra consegui ter alguma intimidade com ela. E isso me incomodou. Os integrantes de uma certa tripulação que não vou comentar para não dar spoilers são muito inteligentes, cheios de histórias para contar, mas... não sabia quem de fato eles eram e o que pensavam, apenas vagamente. O personagem que eu mais gostei no romance, pela sua ousadia em enriquecer subvertendo as leis do capitalismo, foi Sol Hadden, e sua história de vida pode ser lida como um conto separado do livro no capítulo Babilônia. Lido dessa forma trata-se de um conto irônico e reflexivo sobre a máquina do capitalismo e seus mecanismos. Vale a leitura.

     Carl Sagan era um gênio, um grande divulgador científico, e um dos grandes astrônomos de sua geração. Este livro tem muita coisa de autobiográfico, sabemos disso. E o que tive em mãos a maior parte do tempo foi um livro de divulgação científica, e não um romance, como era sua proposta. Assim, o livro tendo igualmente aspectos que me são muito caros e outros que não me agradam nem um pouco, estou indeciso sobre minha própria opinião a respeito. Mas é um livro melhor que muita coisa sendo publicada nos dias de hoje. Leiam e tirem suas conclusões.

Carl Sagan e um radiotelescópio. A radioastronomia é o grande tema do romance.

domingo, 3 de novembro de 2013

CRÍTICA: "UM PIANO PARA CAVALOS ALTOS" DE SANDRO WILLIAM JUNQUEIRA


     UM PIANO PARA CAVALOS ALTOS foi publicado aqui no Brasil pela editora Leya na coleção denominada Novíssimos, cuja proposta é trazer um pouco da produção literária de escritores jovens e modernos portugueses. Até agora foram publicados 10 livros por essa coleção, sendo este o segundo que li. O primeiro foi o genial e sensacional PARA CIMA E NÃO PARA O NORTE, de Patrícia Portela, e pelos comentários entusiastas no skoob e em canais literários no YouTube, além da ótima experiência com o livro de Portela, confiei na curadoria da coleção e fui impelido a ler este aqui. 
     Escrito em capítulos curtos, com orações que evitam a subordinação na maior parte do tempo, ainda que em outros momentos, principalmente nos discursos do Ministro Calvo (as melhores partes da obra, a meu ver, apesar de serem as mais politicamente incorretas - falarei mais a respeito adiante), tal recurso seja aplicado e a prosa se torne mais bem desenvolvida (por mais que esse tipo de percepção seja explicitamente subjetivo). Os diálogos não são marcados por travessões ou aspas, o que confere um dinamismo interessante, numa técnica que remete bastante a de José Saramago. Contudo, o desenvolvimento dos diálogos são pobres, propositalmente mal desenvolvidos, buscando retratar a pobreza da comunicação cotidiana em que as pessoas não sabem mais expressar suas emoções, não sabem direcionar objetivamente uma conversa. Uma entrevista do lendário psiquiatra russo Alexander Bukhanovsky ilustra mais ou menos o que o autor quis passar:

  “Como um psiquiatra eu posso ver claramente dois problemas da sociedade russa: a degradação e o enfraquecimento mental. Aos poucos, a empatia e o desejo de compreender o outro emocionalmente estão desaparecendo. Costumo brincar fazendo uma analogia com os últimos anos da guerra. Nasci em 1944 e me lembro da minha mãe trazendo desabrigados para casa, alimentando-os com sopa. Minha avó ajudava cozinhando. Quem hoje poderia fazer o mesmo?”

     Para quem se interessar, neste site tem uma mini biografia e uma entrevista com este ser humano admirável que foi Bukhanovsky, e que vale a pena ser lida:          http://oaprendizverde.com.br/2013/06/24/alexander-bukhanovsky-lenda-da-psiquiatria-morre-na-russia/

     Por falar em degradação, é assim que os personagens são: degradados. Inominados, são designados de acordo com suas características físicas ou seu status social, e estas características físicas são em geral imperfeições: Ministro Calvo (embora a calvície não seja uma imperfeição - será que foi um preconceito do William ou uma proposital excessão à regra?), verdugo Olho de Vidro, Militar Coxo, Prostituta Anã (prestar atenção no discurso da puta e da santa, que é muito bom), etc. Se a denominação não é degradante, as situações são: o Médico Loiro está mais para um dono de salão de beleza, o Diretor sofre de cálculo renal (e sua vontade de urinar são as partes mais as partes mais engraçadas do livro), o Mensageiro, que é um verruguento, mas de mãos honestas, o Operário, que descobrindo sua sexualidade gay, trás algumas das páginas mais toscas que já li em minha vida, e a mulher do Diretor, a Ruiva, cujo tratamento médico salienta que o Médico Loiro crê mais em crendices populares que na ciência (embora as justificativas do Médico sejam inteiramente verossímeis, o que é um ponto positivo para o livro). Essas imperfeições são o motivo de riso do livro, e podemos fazer analogia ao teatro grego de comédia, cuja graça estava exatamente nas imperfeições físicas, eram elas os motivos de riso e deboche da platéia, e em nosso caso, leitores. 
     O que se percebe desse livro, portanto, é uma verdadeira tragicomédia não definida. A história se passa num ambiente imaginário, em que foi construído um país opressor e tirânico que separam as pessoas pelo status social (e as justificativas do Ministro Calvo para essa segregação parecem os discursos de Hitler, cheios de frases de efeito, que ludibriaram os alemães a aderirem sem receio a uma política separatista, autocrática e psicopata, tudo por causa de um sentimento de dignidade) através de um Muro (poderíamos designá-lo como mais um personagem, apesar de inanimado?). A força da economia local, por sua vez, é movida por uma indústria macabra. Nesse ambiente, uma revolta está crescendo no seio das massas populares, prestes a florescer numa revolução. 
      Em relação ao surgimento de uma revolta, o mecanismo do livro foi muito bom, pois não sabemos exatamente o que é que está sendo planejado, não sabemos o papel de cada um dos personagens no processo, e isso cria um bom suspense. Mas o final só vai ser frustrante ou espetacular dependendo do ponto de vista de cada um. 
     Mas, e a tragicomédia não definida? Bem, o livro é tragicômico pelo simples motivo de que conta, através de atos absurdos cometidos por personagens propositalmente ridículos e caricatos, uma história que é trágica, e cujo futuro só nos resta especular. Assim é a vida. Se hoje acontecesse uma revolução, o que será que acontecerá amanhã? Quando o Czarismo russo foi deposto, se falava em igualdade, mas quem é que sabia que o Porco Napoleão (alusão minha A Revolução dos Bichos, de George Orwell) ludibriaria seus iguais (o quão importante e perigoso é a publicidade e o marketing se usados para fins indevidos, por exemplo, a CocaCola) para subir ao poder? O futuro é imprevisível. Nunca saberemos o que vem a seguir.
     Um personagem emblemático é o Filho, que trás um sentido de esperança a essa sociedade abestalhada que somos. Queiramos ser crianças.
     Ainda assim, é um livro desconexo, alguns personagens não têm utilidade alguma para a história, apesar de objetivar não ter um protagonista definido, uns personagens prevalecem sobre o outro, o que é um problema, a meu ver. Enfim, é um bom livro, sim, mas ainda assim é um tanto pretensioso. Trás boas reflexões, mas jamais alcançam a maestria que poderia ter, e que com certeza era pretendida. Mas, não sabemos do futuro e Sandro William Junqueira tem tudo pra se tornar um grande escritor. Pelo menos ele gosta de temas ambiciosos. 
     Enquanto isso, seguimos com as nossas vidas tragicômicas de cada dia.   

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

CRÍTICA: "PRECISAMOS FALAR SOBRE O KEVIN" DE LIONEL SHRIVER



     Precisamos Falar Sobre o Kevin acabou por ser uma leitura densa, que exigiu muito de mim, até mesmo fisicamente falando (tive uns pesadelos estranhos por conta deste livro e acordei cansado por conta deles), mas jamais me desestimulou, e lê-lo lentamente, analisando a riqueza da escrita de Lionel Shriver, foi um prazer indescritível. É muito bom quando descobrimos uma escritora que não está simplesmente preocupada em narrar uma ação do início, meio e fim, mas utiliza recursos para esmiuçar — através de um olhar subjetivo elegante, seco, pungente, de forte acidez crítica, mas também de uma, por vezes, delicadeza apaixonada (sobretudo quando a narradora se refere ao seu marido ausente, em alguns momentos) — o significado de tudo o que ocorre, traçando paralelos e comparações da história narrada com exemplos reais, além de analisar tudo, na medida do possível, sob a luz da psicológia, mas ainda assim, permitindo à narradora tomar partido. Em poucas palavras: esse livro é uma obra prima, na minha humilde opinião, um livro que já nasceu clássico, tanto pela urgência do tema quanto pela força narrativa.
     O livro conta a história de Eva Katchadurian, uma mãe americana atípica, descendente de armênios e que, cidadã do mundo por conta de sua profissão, se sente uma estrangeira em seu próprio país. Percebemos desde o início do texto um sentimento de inadequação a alguma coisa: ao seu marido (apesar de amá-lo muito), aos seus próprios pais, às pessoas de seu convívio, ao seu lar, e principalmente, à maternidade, que é o grande tema do livro. Desde o princípio, sabemos que ela é a mãe de um adolescente igualmente atípico, o Kevin do título, um psicopata que assassinou sete colegas de classe, uma professora e um servente da escola três dias antes de completar a maioridade penal. A partir dessa premissa, através de cartas ao marido ausente, Lionel Shriver compõe um dos melhores exemplos de romances epistolares, relatando em retrospectiva sua vida antes e após o casamento, o período da gravidez, a dificuldade de se criar um filho, principalmente um como Kevin, que não demonstra interesse por nada. O romance não segue uma linearidade nem temporal nem analítica, o que ajuda a estabelecer uma dinâmica interessante.
     O fato de Kevin ter cometido essa atrocidade leva Eva a escrever ao marido as cartas, e a sinceridade das palavras de Eva, que trazem um tom um tanto melancólico, mas ao mesmo tempo ácido, denunciam que essas cartas são um recurso utilizado por Eva para não se deixar dominar pela depressão e estagnação, tratando-se de uma maneira que ela achou para se manter plena de consciência, ao invés de desabar no chão. Isso já trás mais um pouco da característica de Eva: uma mulher forte, empreendedora, mas ao mesmo tempo egoísta e desapegada. Até onde seu jeito de ser e de se comportar, seus atos e comentários inspiraram o pequeno Kevin a cometer sua carnificina? Reflexões desse tipo a levam a um sentimento de culpa que cresce aos poucos, embora percebemos um esforço tremendo para a manutenção de seu amor próprio e para evitar a negação de si mesma, tentando destruir sentimentos de derrota. Ela assume responsabilidades de uma maneira muito elegante.
     Através desses sentimentos e dos detalhes desenvolvidos e comentados, Lionel Shriver acaba por esculpir um verdadeiro tratado sobre a maternidade: o que é ser mãe? As perdas que as mães sofrem por causas do filhos. As mães tem culpa pelos atos dos filhos? É pecado as mães odiarem os próprios filhos? Várias outras questões acerca da maternidade são postas em evidência. A cultura crescente dos assassinatos nas escolas são postas como pano de fundo para essas reflexões. O propósito do livro não é analisar o que leva os adolescentes a cometerem atos tão violentos. Ainda assim, em paralelo ao caso de Kevin, acabamos por conhecer, ao longo do texto, vários exemplos de casos históricos e reais de atentados, e a motivação dos executores; por mais irônico que possa parecer, essas foram algumas das poucas partes que eu me pus a rir durante o texto, e os comentários de Eva são muito bons.
     Além de tudo isso, o texto ainda reflete acerca o poder do medo sobre uma população frágil e ingênua, como é a população dos Estados Unidos da América. Quem já assistiu Tiros em Columbine, de Michael Moore, vai se lembrar dos comentários do cineasta a respeito da paranoia generalizada que o medo ocasionou.

     Enfim, um grande livro. Isso resume tudo e o resto é conversa. Boa leitura. 

terça-feira, 1 de outubro de 2013

CRÍTICA: "MORTE SÚBITA" DE J.K.ROWLING



     O que seria do mundo se não houvesse a filantropia? Se não houvessem pessoas altruístas, que fazem o bem aos próximos sem buscar absolutamente nada em troca? Se todas as pessoas agissem de acordo com o seu próprio interesse, na filosofia barata de vários livros de auto ajuda que pregam que, sendo nós os responsáveis pelos nossos próprios atos, devemos ignorar, ou simplesmente lamentar que pessoas com os mais diversos tipos de problemas — o vício de drogas, por exemplo, que é abordado extensivamente ao longo do livro — não sejam elas igualmente responsáveis por si mesmas, que tudo isso depende apenas da força de vontade delas e que não temos nada a ver com aquilo? Em outras palavras: se só levássemos em conta a nossa responsabilidade pessoal aos nossos problemas, ignorando por completo, até mesmo desconhecendo-se a existência de nossa responsabilidade social? Creio que foi essa a matriz da discussão que a escritora inglesa J.K.Rowling (abandonando o mundo da fantasia depois de longos anos dedicados ao universo do jovem bruxo Harry Potter) quis desenvolver com o seu romance The Casual Vacancy, que em nossas terras ganhou o título de Morte Súbita.

     Ambos os títulos estão de acordo, pois, com a morte súbita de Barry Fairbrother, o irmão justo, o último altruísta da cidade, logo na segunda página, o Conselho Distrital da cidade de Pagford ficou com uma vacância casual, pois Barry fazia parte desta organização, e a ausência dele é o que dará origem a quase todos os conflitos existentes ao longo da obra. O principal desses conflitos é a decisão de retirar da jurisdição da pacata e bela cidadezinha de Pagford o bairro de Fields, um típico bairro popular extremamente pobre, “lar de drogados, ladrões e prostitutas”, e que em nada combina com Pagford de pessoas “honestas e trabalhadoras”. Barry era a favor de que Fields permanecesse na jurisdição de Pagford. Ele acreditava que pessoas boas, importantes e educadas podiam sair de qualquer lugar, inclusive de um lugar tão devastado como Fields, e ele era o único que acreditava nisso, o único que podia fazer algo a respeito. Com sua morte, seu ponto de vista perde força, e a ruptura iminente de Pagford com Fields fará com que a única clínica de reabilitação de drogados da região seja fechada, pois o prédio pertence a Pagford, além, de segundo os anti-Fields, a clínica só atender pessoas de Fields com recursos de Pagford, sem grandes resultados e com grande prejuízo financeiro, pois “os drogados sempre reincidem”, como diz Howard Mollison, o chefe desse clã. Infelizmente, os gráficos e as pesquisas de eficiência da clínica que dariam voz aos pensamentos de Barry não são levados em conta. A catástrofe se aproxima.

     O livro é apresentado no ponto de vista de várias pessoas através de um narrador onisciente em terceira pessoa. Esse estilo narrativo, faz com que nos identifiquemos em pouco tempo com os personagens, entendendo seus pensamentos, suas motivações e seu contesto. Quando observamos um personagem que conhecemos sobre a lente de um outro personagem, percebemos que, assim como em Harry Potter, o grande tema que move J.K.Rowling é o preconceito: “bom senso: é assim que denominamos nossos maiores preconceitos”, como diz Kay Bawden no livro.

     Um grande mérito do livro é saber caracterizar tão bem seus personagens, principalmente os adolescentes. Os conflitos adolescentes são muito importantes para mover a história para a frente, e isto é curioso considerando a natureza adulta do romance. O mesmo cuidado ela não teve com alguns personagens adultos: ainda que haja personagens adultos bem construídos, como Kay Bawden e Colin Wall — de longe um dos personagens que eu mais gostei, pela complexidade decorrente do TOC que o acomete, e sua ousadia dentro de suas possibilidades e limitações —, uma boa parcela dos anti-Fields foram retratados de maneira estereotipada, como pessoas gananciosas, bonachonas, patéticas, o que enfraquece um pouco a obra, tornando-a um tanto quanto maniqueísta, e impossibilitando debates mais amplos dos problemas apresentados no segundo parágrafo da presente crítica. Para quem é acostumado com a literatura de Dostoievski, com amplos debates sobre problemas sociais e filosóficos, os debates deste livro decepciona um pouco em sua qualidade, mas tenho que entender que J.K.Rowling é uma autora de ações, e não de discussões, e sua narrativa ágil e agradável é utilizada a favor de questões super importantes, o que é muito bom para que adolescentes entrem em contato com esse tipo de questões, o que seria difícil para a maioria dos adolescentes, que nunca ouviram falar da literatura russa  

     Ainda assim, o livro retrata muito bem a realidade das pessoas drogadas e como o meio social contribui para a reincidência do uso das drogas, e no desenvolvimento desse núcleo de personagens, percebemos que por trás de todos eles, temos que levar em conta o histórico das pessoas antes de julgá-las e condená-las. E retrata o quão fundamental é a profissão dos assistentes sociais nesse tipo de ambiente.
       
     Um ótimo livro, apesar de seus poucos defeitos. Nos faz pensar bastante, e eleva nosso senso crítico.