quinta-feira, 12 de junho de 2014

GEN - PÉS DESCALÇOS (Keiji Nakazawa)

     

     Venho aqui hoje para recomendar o incrível mangá Gen - Pés Descalços, de Keiji Nakazawa. A obra é dividida em dez volumes, sendo que a Editora Conrad até o momento lançou até o sétimo em nosso país.
   
     E porque eu recomendo este mangá? Porque é uma obra que tem a capacidade de transmitir sentimentos e valores que diariamente vêm sendo cada vez mais ignorados. É uma obra que ensina a nos colocarmos no lugar dos outros, e assim, a nos emocionarmos e sentirmos compaixão verdadeira pelo sofrimento humano, além de sentirmos a alegria dos personagens quando eles conseguem algo de bom na vida diante do mais puro caos.

     E que caos seria esse? O caos de enfrentar a bomba de Hiroshima. O caos dos sobreviventes de encarar os efeitos da bomba, de enfrentar os preconceitos surgidos e difundidos pelas pessoas de cidades vizinhas, que não queriam se contaminar com o "veneno da bomba". O caos da miséria decorrida desse processo todo. O caos do complexo moral da sociedade.

     Guerra após guerra, suprimentos alimentares e outros tipos de recursos são tirados da população civil menos abastada para ser doada aos "bravos guerreiros", que, como robôs, não têm autonomia de pensamentos, são meros fantoches do governo sem se darem conta; pacifistas ativos são vistos como estorvos da sociedade; preconceitos são difundidos hipnoticamente, até se tornarem jargões populares e lugares comuns. Aqui no Brasil seria por acaso diferente? Em relação a essa Copa do Mundo, por exemplo, se pensou alguma vez em se deslocar e demolir algum imóvel das classes mais abastadas para a melhoria da infra-estrutura? (Esse é o tema do primeiro volume).

     O segundo volume retrata Gen e o que restou da sua família pela sobrevivência depois da bomba. Como ter bom senso diante do desastre? Imagine o exemplo de se estar morto de sede, ter água na sua frente e não poder bebê-la por conta de uma contaminação invisível.

     O terceiro volume retrata o senhor Seiji, que foi atingido pela bomba e foi pedir ajuda aos seus familiares, que assim o manteve em quarentena, isolado e carcomido pelos vermes. Gen é uma luz para este homem. Para mim este é o mais bonito de todos os volumes.

     Os demais volumes também são magníficos.           



     Como ir contra uma sociedade envenenada, manipulada. Lembro das palavras de Liev Tolstói em Guerra e Paz

     Os pensamentos que têm enormes consequências são sempre singulares. Minha ideia é que, se as pessoas corrompidas estão relacionadas entre si e constituem uma força, as honradas devem fazer o mesmo, pois é fácil. 

     Será que é tão fácil assim? Diante do sistema atual, em que as pessoas boas são obrigadas a serem corruptas no dia a dia por questão de sobrevivência, é cada vez mais difícil a união pela promoção da justiça e e pela honra (por exemplo, simplesmente não podemos correr o risco de sermos demitidos de nossos empregos por conta de atrasos, então, se necessário for, não estamos errados em furar a fila dos ônibus, em esmurrar os outros trabalhadores e estudantes que também têm seus horários a cumprir, não receamos atropelar criancinhas e idosos, e no fim das contas, quando estamos todos imprensados como sardinhas numa lata imunda, cada um de nós lava as próprias mãos. As pessoas que ficaram para trás, esperando pacientemente nas filas, deixaram de ser pessoas honradas; na verdade, não passam de manés: rimos e debochamos deles, soltamos língua, fazemos careta, lhes chamamos de otários. Eis algumas palavras fundamentais de Juli Zeh, autora de A Menina Sem Qualidades:

     Se nos limitarmos a lamentar e chorar o vazio surgido, a vida passará por cima dessas lacunas com suas longas pernas e construirá para si pontes de ilegalidade cujo material de construção chama-se pragmatismo. O problema não consiste no fato de homens gostarem de fazer coisas cruéis, mas sim da crueldade ser algo tão simples. E o que funciona bem e com sucesso hoje em dia é considerado bom. Portanto o pragmatismo subdivide homens e suas ideias segundo a sua capacidade funcional; ele faz com que todos se lancem uns sobre os outros, e coroa o vencedor como bom. Nisso, ele atende ao mais antigo e mais primitivo dos instintos: os instintos da selva. A natureza é pragmática; todos os animais são pragmáticos. O homem é só um animal onde suas ideias acabam. O pragmatismo substituiu tudo que no passado as grandes ideias poderiam nos oferecer.    



     Eis a lamentável realidade.) É disso de que se trata o complexo moral social. E é disso que se trata Gen - Descalços. Como manter a dignidade em meio ao desespero? Como ter sentimentos humanos como compaixão e piedade em um momento em que os instintos estão ávidos pela saciedade, e em que é difícil não se entrar em disputas por recursos extremamente escassos? 

     O complexo moral social é algo que merece ser estudado fortemente nas escolas, e eu indico plenamente Gen - Pés Descalços para essa finalidade, por ser fácil e rápido de ser lido, por ser impactante, triste e ao mesmo tempo engraçado. Se você é educador ou pai, conheça essa obra e a repasse a seus alunos e filhos adolescentes, a sociedade agradece. Pode ter certeza que este mangá vai engrandecer o caráter de quem o ler.

     OBS: Em 2001, a Conrad lançou uma versão resumida em 4 volumes, que é boa também, mas menos abrangente do que esta versão atual.