domingo, 3 de novembro de 2013

CRÍTICA: "UM PIANO PARA CAVALOS ALTOS" DE SANDRO WILLIAM JUNQUEIRA


     UM PIANO PARA CAVALOS ALTOS foi publicado aqui no Brasil pela editora Leya na coleção denominada Novíssimos, cuja proposta é trazer um pouco da produção literária de escritores jovens e modernos portugueses. Até agora foram publicados 10 livros por essa coleção, sendo este o segundo que li. O primeiro foi o genial e sensacional PARA CIMA E NÃO PARA O NORTE, de Patrícia Portela, e pelos comentários entusiastas no skoob e em canais literários no YouTube, além da ótima experiência com o livro de Portela, confiei na curadoria da coleção e fui impelido a ler este aqui. 
     Escrito em capítulos curtos, com orações que evitam a subordinação na maior parte do tempo, ainda que em outros momentos, principalmente nos discursos do Ministro Calvo (as melhores partes da obra, a meu ver, apesar de serem as mais politicamente incorretas - falarei mais a respeito adiante), tal recurso seja aplicado e a prosa se torne mais bem desenvolvida (por mais que esse tipo de percepção seja explicitamente subjetivo). Os diálogos não são marcados por travessões ou aspas, o que confere um dinamismo interessante, numa técnica que remete bastante a de José Saramago. Contudo, o desenvolvimento dos diálogos são pobres, propositalmente mal desenvolvidos, buscando retratar a pobreza da comunicação cotidiana em que as pessoas não sabem mais expressar suas emoções, não sabem direcionar objetivamente uma conversa. Uma entrevista do lendário psiquiatra russo Alexander Bukhanovsky ilustra mais ou menos o que o autor quis passar:

  “Como um psiquiatra eu posso ver claramente dois problemas da sociedade russa: a degradação e o enfraquecimento mental. Aos poucos, a empatia e o desejo de compreender o outro emocionalmente estão desaparecendo. Costumo brincar fazendo uma analogia com os últimos anos da guerra. Nasci em 1944 e me lembro da minha mãe trazendo desabrigados para casa, alimentando-os com sopa. Minha avó ajudava cozinhando. Quem hoje poderia fazer o mesmo?”

     Para quem se interessar, neste site tem uma mini biografia e uma entrevista com este ser humano admirável que foi Bukhanovsky, e que vale a pena ser lida:          http://oaprendizverde.com.br/2013/06/24/alexander-bukhanovsky-lenda-da-psiquiatria-morre-na-russia/

     Por falar em degradação, é assim que os personagens são: degradados. Inominados, são designados de acordo com suas características físicas ou seu status social, e estas características físicas são em geral imperfeições: Ministro Calvo (embora a calvície não seja uma imperfeição - será que foi um preconceito do William ou uma proposital excessão à regra?), verdugo Olho de Vidro, Militar Coxo, Prostituta Anã (prestar atenção no discurso da puta e da santa, que é muito bom), etc. Se a denominação não é degradante, as situações são: o Médico Loiro está mais para um dono de salão de beleza, o Diretor sofre de cálculo renal (e sua vontade de urinar são as partes mais as partes mais engraçadas do livro), o Mensageiro, que é um verruguento, mas de mãos honestas, o Operário, que descobrindo sua sexualidade gay, trás algumas das páginas mais toscas que já li em minha vida, e a mulher do Diretor, a Ruiva, cujo tratamento médico salienta que o Médico Loiro crê mais em crendices populares que na ciência (embora as justificativas do Médico sejam inteiramente verossímeis, o que é um ponto positivo para o livro). Essas imperfeições são o motivo de riso do livro, e podemos fazer analogia ao teatro grego de comédia, cuja graça estava exatamente nas imperfeições físicas, eram elas os motivos de riso e deboche da platéia, e em nosso caso, leitores. 
     O que se percebe desse livro, portanto, é uma verdadeira tragicomédia não definida. A história se passa num ambiente imaginário, em que foi construído um país opressor e tirânico que separam as pessoas pelo status social (e as justificativas do Ministro Calvo para essa segregação parecem os discursos de Hitler, cheios de frases de efeito, que ludibriaram os alemães a aderirem sem receio a uma política separatista, autocrática e psicopata, tudo por causa de um sentimento de dignidade) através de um Muro (poderíamos designá-lo como mais um personagem, apesar de inanimado?). A força da economia local, por sua vez, é movida por uma indústria macabra. Nesse ambiente, uma revolta está crescendo no seio das massas populares, prestes a florescer numa revolução. 
      Em relação ao surgimento de uma revolta, o mecanismo do livro foi muito bom, pois não sabemos exatamente o que é que está sendo planejado, não sabemos o papel de cada um dos personagens no processo, e isso cria um bom suspense. Mas o final só vai ser frustrante ou espetacular dependendo do ponto de vista de cada um. 
     Mas, e a tragicomédia não definida? Bem, o livro é tragicômico pelo simples motivo de que conta, através de atos absurdos cometidos por personagens propositalmente ridículos e caricatos, uma história que é trágica, e cujo futuro só nos resta especular. Assim é a vida. Se hoje acontecesse uma revolução, o que será que acontecerá amanhã? Quando o Czarismo russo foi deposto, se falava em igualdade, mas quem é que sabia que o Porco Napoleão (alusão minha A Revolução dos Bichos, de George Orwell) ludibriaria seus iguais (o quão importante e perigoso é a publicidade e o marketing se usados para fins indevidos, por exemplo, a CocaCola) para subir ao poder? O futuro é imprevisível. Nunca saberemos o que vem a seguir.
     Um personagem emblemático é o Filho, que trás um sentido de esperança a essa sociedade abestalhada que somos. Queiramos ser crianças.
     Ainda assim, é um livro desconexo, alguns personagens não têm utilidade alguma para a história, apesar de objetivar não ter um protagonista definido, uns personagens prevalecem sobre o outro, o que é um problema, a meu ver. Enfim, é um bom livro, sim, mas ainda assim é um tanto pretensioso. Trás boas reflexões, mas jamais alcançam a maestria que poderia ter, e que com certeza era pretendida. Mas, não sabemos do futuro e Sandro William Junqueira tem tudo pra se tornar um grande escritor. Pelo menos ele gosta de temas ambiciosos. 
     Enquanto isso, seguimos com as nossas vidas tragicômicas de cada dia.