domingo, 22 de dezembro de 2013

CRÍTICA: "EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO, VOLUME 1 (NO CAMINHO DE SWANN), DE MARCEL PROUST

   
     Não sei porque não fiz resenha desse livro ainda. Talvez porque qualquer coisa que eu vier a escrever aqui não seja digno de uma única linha sequer do que Proust escreveu. Este é, sem sombra de dúvida, o livro mais perfeito que já li, tanto no sentido puramente técnico, como no que se refere à emoção contida ao longo de suas 500 páginas (claro, refiro-me ao primeiro volume).  
     Como não se encantar com a beleza do tema proposto por Proust, que dá nome ao próprio livro, ou seja, a busca pelo tempo que já se foi, que não pode voltar atrás, mas que nos deixa lembranças profundas em nossos corações? Proust analisa, com uma profundidade única, o que há na situação mais que banal, evocando as lembranças involuntárias. Podemos usar como exemplo o caso de um amor platônico que nunca se concretizou por pura timidez de ambas as partes, mas que marcou as descobertas do amor na juventude, e várias das associações que fazemos com esse período mágico, como por exemplo, as músicas que associamos à pessoa amada. Ou as reminiscencias dos sabores de refeições que nossa mães e avós preparavam ao jantar. O que aconteceria se depois de tantos anos, quando nem mais pensássemos no passado, nos deparássemos com essas músicas ou refeições? Talvez nós, que somos jovens, não tenhamos tanta sensibilidade para entender o que Proust nos está a mostrar, pois nosso passado ainda está próximo de nosso presente, mas o tempo correrá logo, e as memórias involuntárias virão. Não é a toa que esse tipo de memória seja muitas vezes designada de memória proustiana, visto a destreza com que o autor soube explorar nossos sentimentos.
      Proust escrevia como um bicho-da-seda produz a seda, continuamente, quase que sem interrupções,  ao longo de frases e orações enormes, num fluxo constante de pensamentos, em que até mesmo os comentários e descrições são minuciosos, fruto da memória que o autor tem do que ele está narrando, e não descrições de um tempo presente. Ou seja, ele reflete, com toda a experiência de vida ao longo dos anos, sobre tudo o que descreve. Mas diferentemente de descrições que vemos em autores da escola realista, tal qual Eça de Queirós, a descrição desse livro é de uma poeticidade, de uma singeleza cativante, ainda que não tenha nenhum traço que remeta ao romantismo, sendo portanto mais apropriado classificá-lo, só para fins didáticos, como uma obra impressionista, sendo as impressões pessoais a respeito de tudo o que guia a obra. Como exemplo, a descrição do narrador, relembrando sua juventude, a respeito de Méseglise (o caminho de Swann) antes de ver Gilberte, seu amor de infância, e como por conta disso aquele ambiente se tornou tão precioso em sua memória.
      Quanto a técnica do fluxo de pensamentos, vários autores a usaram, sendo a mais famosa entre nós Clarisse Lispector. Acontece que Proust soube utilizá-la como ninguém. Seu pensamento contínuo surpreendentemente não foge nunca do foco da narrativa, não perde a coerência, e isso é muito difícil, visto a dimensão da obra. Quem adora Clarisse e nunca leu Proust não sabem o que estão perdendo, apesar do intimismo da brasileira ser bem mais acentuado, mas ao mesmo tempo, confuso.   
       Este não é um livro em que a narrativa e enredo seja o mais importante; como dito antes, é uma obra a respeito da memória e por consequência, do pensamento. Mas não só isso: é uma grande obra sobre a passagem do tempo e seus efeitos na vida em geral, as mudanças que ele traz, tanto mudanças arquitetônicas (tem uma passagem curiosa que remete ao ditado popular Água mole em pedra dura tanto bate até que fura, a respeito de uma fonte batismal da igreja de Combray), como também na vida das pessoas, no que tange status sociais, personalidade e pensamentos. Um personagem influente numa época numa outra não mais o será, assim como o contrário ocorre. Isso nos mostra a inutilidade de julgar os outros. Nunca sabemos o que o futuro nos aguarda. E não adianta nos vangloriarmos ou nos desprezarmos pelo que somos hoje. Nada é estático.
     Além disso tudo, o livro é um reflexo da modificação da vida social. Adentramos no meio da alta nobreza francesa e da burguesia ascendente à luz da segunda fase da revolução industrial, e percebemos seus costumes, suas hipocrisias, seus preconceitos, e além de tudo, a superficialidade e a ociosidade da grande sociedade. O livro nos faz sentir o tédio que os personagens sentem na pele, e isso é um elogio. Além disso, nos deleitamos com a sensibilidade de Proust ao não transformar o retrato que está expondo numa caricatura: desvendamos um humanismo muito grande dentro de corações fúteis, e isso é fantástico. Sua obra não é de crítica e denúncia social, como as obras do realismo, mas antes de uma apreciação de um quadro pontilhado. Proust jamais toma partido de coisa alguma, e isso é ótimo no caso de um romance. Um romance se torna mais completo quando não sabemos que ideais e que personagem ou grupo de personagens o autor se identifica (por isso que as obras com teor panfletário no geral são um tremendo pé no saco).
     Em Busca do Tempo Perdido foi dividido em 7 volumes. Esta resenha se refere ao volume 1, denominado No Caminho de Swann. O título se refere aos dois caminhos que existem, a partir da residência do narrador e herói do romance - Combray. De um lado, há o caminho que vai dar para as terras do Senhor de Guermantes, que será melhor explorado no terceiro volume, e Méseglise, que é o Caminho de Swann. Charles Swann é um personagem sofisticado e elegante que exercerá uma longa influência no narrador ao longo da narrativa. Neste primeiro volume, que retrata a infância do herói do romance, somos apresentados ao grande mote de todos os volumes, que é sua jornada em busca de se tornar um escritor. Swann sonhando em escrever uma obra crítica a respeito do pintor holandês Vermeer, porém, não conseguindo ir nunca em frente em seus intentos, por puro tédio e ociosidade, exercendo sobre Marcel (o narrador, que não é Marcel Proust, apesar de a obra ter um grande tom autobiográfico) uma influencia negativa do qual este tem que lutar contra, para que possa realizar seu sonho. Ao mesmo tempo, somos apresentados a Gilberte, a filha de Swann com Odette de Crécy (cuja história será explorada na segunda parte do primeiro volume, numa única parte dos 7 volumes em que há uma narração em terceira pessoa - mas que ainda percebemos ser uma narrativa feita por Marcel por menções a seu avô - denominado Um amor de Swann), que se mostra como a primeira paixão do narrador. As descrições sobre os amores juvenis, ainda que platônicos muitas vezes, estão entre algumas das mais belas passagens do romance. Se alguém compreendeu a natureza do amor, este foi Proust. Na verdade, não tem um tipo sentimento e de sensação que Proust não soube analisar com profundidade magistral. Pois este livro, antes de tudo, é um livro que nos faz ter sensações as mais variadas, indo da mais pura alegria a uma grande tristeza, indo do puro encanto por vislumbrar a luz do dia a mais terrível opressão por se deixar corromper por um amor muitas vezes sem sentido, como no caso de Swann, um homem refinado, que se apaixona por Odette de Créci, que nada tem de brilhante, além de ser uma mulher fútil e de passado suspeito. Quando terminamos a narrativa, pensei que eu mesmo era Swann. Swann somos todos nós.
        Ah, tem-se muito a se falar de Proust, e eu bem que queria me deter em cada detalhe da obra, mas são tantos... Proust, ao nos transportar a esse turbilhão de pensamentos, visões críticas, vislumbre, encantamento, ao nos incentivar a encarar um olhar único sobre a infância, nos envolve, transforma sua história em nossa própria história, transformando o EU em NÓS, compartilha o que há de mais bonito no coração humano: o amor. Só posso dizer que se há um livro que merece ser lido e relido, é este. 

sábado, 14 de dezembro de 2013

CRÍTICA: "CONTATO" DE CARL SAGAN


       À medida em que fui lendo o livro Contato, de Carl Sagan, minhas reações foram as mais diversas possíveis. Agora, terminada a leitura, não sei dizer se gostei ou não do que li. Explico, resumidamente, o que desenvolverei ao longo da resenha: Contato é um livro cheio de aspectos científicos que só os grandes escritores de aventura e ficção científica sabem traduzir para a literatura ficcional com devida verossimilhança, e nisso o livro é fantástico; no entanto, não consegui me aproximar de nenhum personagem em especial, justamente devido à excessiva linguagem científica, que acabou por ofuscar os dramas pessoais de cada personagem.
     O início é a parte mais doce e poética de todo o livro, em que acompanhamos o desenvolvimento intelectual da pequena Ellie Arroway, que através de suas travessuras infantis, acaba descobrindo o universo fascinante dos números transcendentais, e com isso se apaixonando pela matemática, que acabará por leva-la ao estudo da astronomia e ao desenvolvimento de uma personalidade extremamente cética e pragmática. A cena em que ela está deitada ao chão segurando a terra com força por causa de sua sensação de conseguir captar o movimento da terra é muito bonita e singela. Em sua infância também ela lê a bíblia de cabo a rabo e cria uma opinião própria, captando as contradições do “livro sagrado”.
     E este é o tema que permeará todo o livro: o embate entre a ciência e a religião, que chega ao estopim a partir da polêmica de uma mensagem captada por radiotelescópios do mundo inteiro, trazendo uma mensagem científica que revela o contato entre espécies inteligentes extraterrestres. Ou será que é o contato do Criador para com suas criaturas? Ainda assim, achei que esse aspecto foi mal explorado. Os personagens nunca chegam a uma ideia concreta. Claro, eu compreendo o autor: para esse tipo de questão, não existem fórmulas nem precisão, então não se pode chegar a uma ideia concreta. O problema é que muitos diálogos ficam em aberto, como o diálogo de Ellie com Palmer Joss em um museu, interrompido por um guarda. Achei que o autor forçou a barra nesse sentido, como se não soubesse que fim dar a uma cena e a um diálogo, simplesmente o interrompa.

     
Filme de 1997 inspirado no livro. Grande filme, quase se tornou uma obra-prima do cinema

     O que me agradou bastante no livro, como já disse, foi o aspecto científico. Eu gosto de aprender coisas novas. Aprendi sobre os radiotelescópios, como eles funcionam e pesquisas relacionadas à melhoria de seus receptores; alguns aspectos de física em geral, além da história da ciência e de história geral, como a vida de um guerreiro ambicioso chamado Qin que deu seu nome ao país China (Qin). O livro também trás alguns conceitos filosóficos, como  o Numinoso, termo cunhado por Rudolf Otto para designar o estado de espírito espiritualizado, mas não necessariamente por uma crença num ser divino. Um ator num palco de teatro quando totalmente entregue a seu personagem, de certa maneira sente o numinoso, pois se acha transubstanciado, por exemplo. Reflexões sobre a vida e a morte é um dos temas do capítulo Gilgamesh, e é algo que merece ser relido.
     O problema do livro, como disse, são os personagens, que apesar de serem interessantes, são distantes. O relacionamento de Ellie com sua mãe e o drama que Carl Sagan tenta desenvolver pelo distanciamento das duas não importa muito, melhor teria sido se sua mãe tivesse morrido no início do romance. Ainda assim, não tem como não se encantar pela personalidade forte de Ellie. O problema é que só vez por outra consegui ter alguma intimidade com ela. E isso me incomodou. Os integrantes de uma certa tripulação que não vou comentar para não dar spoilers são muito inteligentes, cheios de histórias para contar, mas... não sabia quem de fato eles eram e o que pensavam, apenas vagamente. O personagem que eu mais gostei no romance, pela sua ousadia em enriquecer subvertendo as leis do capitalismo, foi Sol Hadden, e sua história de vida pode ser lida como um conto separado do livro no capítulo Babilônia. Lido dessa forma trata-se de um conto irônico e reflexivo sobre a máquina do capitalismo e seus mecanismos. Vale a leitura.

     Carl Sagan era um gênio, um grande divulgador científico, e um dos grandes astrônomos de sua geração. Este livro tem muita coisa de autobiográfico, sabemos disso. E o que tive em mãos a maior parte do tempo foi um livro de divulgação científica, e não um romance, como era sua proposta. Assim, o livro tendo igualmente aspectos que me são muito caros e outros que não me agradam nem um pouco, estou indeciso sobre minha própria opinião a respeito. Mas é um livro melhor que muita coisa sendo publicada nos dias de hoje. Leiam e tirem suas conclusões.

Carl Sagan e um radiotelescópio. A radioastronomia é o grande tema do romance.