quinta-feira, 22 de maio de 2014

Pequenas possíveis sementes

     Hoje me chegou pelos correios o livro A Fera na Selva, do escritor Henry James. Sabe, é um livro fininho contendo o conto de James e um posfácio o elucidando escrito por Modesto Carone. Estava muito ansioso para ler esta obra por conta da indicação da bibliotecária Claire Scorzi, cujas opiniões a respeito de literatura, adquiridas ao longo de anos de vivência, na maior parte das vezes concordo e respeito. De modo que, ao ver o livro sobre a minha mesa de estudos, imediatamente comecei a me aventurar por suas palavras, e, tendo lido até agora apenas o primeiro capítulo, posso dizer que a primeira impressão é de que são palavras capciosas, capazes de nos levar a reflexões mais intensas e, para os corações mais fáceis de se emocionar, a uma lágrima pura e preciosa, não por que contenha tons de melodrama - não o contém - mas porque mais cedo ou mais tarde vivenciaremos - comigo já aconteceu -  a situação que os personagens John Marcher e May Bartram vivem, e que é captado com muita sensibilidade pelo escritor: depois de anos, encontrar uma pessoa da qual apenas temos uma lembrança vaga, mas que, na ocasião em que se travou contato, marcou o momento de algum modo e que logo em seguida se esvaiu; lembranças que se tornam poeira no espaço e tempo de nossas vivências particulares. 
     Esse texto de hoje não é uma resenha. Quero apenas apresentar um trecho que para mim já está entre os meus prediletos. Estou tendo o pressentimento de que esse livro vai acabar com meu coração.

     "Não haviam levado senão alguns minutos, no fim das contas, para colocar sobre a mesa, como num jogo de cartas, o que cada um tinha nas mãos; mas o que ficou claro foi que o baralho infelizmente não era perfeito - que o passado, por mais que fosse invocado, convidado, instigado, não lhes poderia dar, naturalmente, mais do que continha. O passado fizera com que se encontrassem - ela com vinte, ele com vinte e cinco anos; mas nada era mais estranho, pareciam dizer um ao outro, que o fato de não lhes ter dado um pouco mais. Olhavam um para o outro com o sentimento de uma ocasião perdida; a atual poderia ter sido muito melhor se a outra, tão remota no passado, numa terra estrangeira, não tivesse sido tão absurdamente escassa. Tudo somado, não havia aparentemente mais do que uma dúzia de pequenas coisas antigas ocorridas entre eles; trivialidades da juventude, frescores de ingenuidade, tolices da ignorância, pequenas possíveis sementes, mas enterradas muito fundo - fundo demais (não parecia?) para germinar tantos anos depois. Marcher disse a si mesmo que devia ter prestado algum serviço a ela - como salvá-la de um barco soçobrado, ou pelo menos recuperar seu estojo de toucador, surrupiado do seu cabriolé, nas ruas de Nápoles, por um ladrão armado de estilete. Ou teria sido bonito se ele tivesse ficado prostrado por uma febre, sozinho, em seu hotel, e ela tivesse cuidado dele, escrito a sua família,, garantido seu restabelecimento. Então sim, eles estariam de posse de alguma coisa da qual sua situação real parecia carecer. Fosse como fosse, porém, essa situação real se apresentava, de alguma forma, como boa demais para ser estragada; assim, eles ficaram reduzidos por alguns minutos a uma especulação impotente sobre o por que - já que conheciam aparentemente tantas pessoas em comum - seu reencontro tardara tanto a ocorrer. Eles não usavam o termo, mas sua demora minuto a minuto em se juntar aos outros era uma espécie de confissão de que eles não queriam que aquilo fosse um fracasso. As hipóteses que arriscavam para o fato de não se terem reencontrado só mostrava o quão pouco eles sabiam um do outro. Houve mesmo mesmo um momento em que Marcher sentiu uma nítida pontada. Era inútil fazer de conta que ela era uma velha amiga, pois faltava para isso qualquer elemento de comunhão, embora fosse como uma velha amiga que ele a achasse adequada para si. Possuía novos amigos em número suficiente - estava cercado deles, por exemplo, naquele mesmo momento, na outra casa; se ela fosse uma nova amiga, provavelmente ele não lhe teria dado tanta atenção. Teria gostado de inventar alguma coisa, atraí-la para fantasiar junto com ele que alguma passagem de tipo romântico ou crítico tinha de fato originalmente acontecido. Estava quase vasculhando na imaginação - como se lutasse contra o tempo - em busca de algo que servisse, e dizendo a si mesmo que, se nada aparecesse, aquele novo encontro iria simplesmente chegar ao fim. Eles iriam se separar, e dessa vez sem a perspectiva de uma segunda ou uma terceira chance."

     Esse texto ajuda a darmos maior valor aos momentos. Vivemos num mundo conturbado, agonizante, e consequentemente cada vez menos se plantam essas pequenas sementes, pois as pessoas não tem mais tempo para essas "trivialidades". Mas são justamente essas possíveis sementes e o fruto que delas poderemos vir a colher que nos humanizam, dignificam e enchem nossos corações de alegria. Vamos valorizar mais os diálogos que travamos, o silêncio compartilhado, a comunhão estabelecida. É triste virarmos poeira nas lembranças de alguém. 
     Lembro das primeiras páginas de  Em Busca do Tempo Perdido, em que Marcel Proust escreve:

     "Ouvia o silvo dos trens que, ora mais, ora menos afastado, e marcando as distâncias como o canto de um pássaro em uma floresta, descrevia-me a extensão do campo deserto, onde o viajante se apressa em direção à próxima parada: o caminho que ele segue vai lhe ficar gravado na lembrança com a excitação produzida pelos lugares novos, os atos inabituais, pelas recentes conversas e as despedidas trocadas à luz de lâmpada estranha que ainda o acompanham no silêncio da noite, e pela doçura próxima do regresso."

     Parece-se que já não há mais essa excitação, apenas a indiferença, na maior parte das pessoas. Precisamos resgatar a nossa capacidade de empatia, nossa necessidade de se encantar verdadeiramente com tudo aquilo que vivenciamos e que vale a pena. Com a mente fechada que estamos atualmente, as oportunidades surgem e não são aproveitadas como se deveria. No final das contas, só sobra o arrependimento.