segunda-feira, 21 de outubro de 2013

CRÍTICA: "PRECISAMOS FALAR SOBRE O KEVIN" DE LIONEL SHRIVER



     Precisamos Falar Sobre o Kevin acabou por ser uma leitura densa, que exigiu muito de mim, até mesmo fisicamente falando (tive uns pesadelos estranhos por conta deste livro e acordei cansado por conta deles), mas jamais me desestimulou, e lê-lo lentamente, analisando a riqueza da escrita de Lionel Shriver, foi um prazer indescritível. É muito bom quando descobrimos uma escritora que não está simplesmente preocupada em narrar uma ação do início, meio e fim, mas utiliza recursos para esmiuçar — através de um olhar subjetivo elegante, seco, pungente, de forte acidez crítica, mas também de uma, por vezes, delicadeza apaixonada (sobretudo quando a narradora se refere ao seu marido ausente, em alguns momentos) — o significado de tudo o que ocorre, traçando paralelos e comparações da história narrada com exemplos reais, além de analisar tudo, na medida do possível, sob a luz da psicológia, mas ainda assim, permitindo à narradora tomar partido. Em poucas palavras: esse livro é uma obra prima, na minha humilde opinião, um livro que já nasceu clássico, tanto pela urgência do tema quanto pela força narrativa.
     O livro conta a história de Eva Katchadurian, uma mãe americana atípica, descendente de armênios e que, cidadã do mundo por conta de sua profissão, se sente uma estrangeira em seu próprio país. Percebemos desde o início do texto um sentimento de inadequação a alguma coisa: ao seu marido (apesar de amá-lo muito), aos seus próprios pais, às pessoas de seu convívio, ao seu lar, e principalmente, à maternidade, que é o grande tema do livro. Desde o princípio, sabemos que ela é a mãe de um adolescente igualmente atípico, o Kevin do título, um psicopata que assassinou sete colegas de classe, uma professora e um servente da escola três dias antes de completar a maioridade penal. A partir dessa premissa, através de cartas ao marido ausente, Lionel Shriver compõe um dos melhores exemplos de romances epistolares, relatando em retrospectiva sua vida antes e após o casamento, o período da gravidez, a dificuldade de se criar um filho, principalmente um como Kevin, que não demonstra interesse por nada. O romance não segue uma linearidade nem temporal nem analítica, o que ajuda a estabelecer uma dinâmica interessante.
     O fato de Kevin ter cometido essa atrocidade leva Eva a escrever ao marido as cartas, e a sinceridade das palavras de Eva, que trazem um tom um tanto melancólico, mas ao mesmo tempo ácido, denunciam que essas cartas são um recurso utilizado por Eva para não se deixar dominar pela depressão e estagnação, tratando-se de uma maneira que ela achou para se manter plena de consciência, ao invés de desabar no chão. Isso já trás mais um pouco da característica de Eva: uma mulher forte, empreendedora, mas ao mesmo tempo egoísta e desapegada. Até onde seu jeito de ser e de se comportar, seus atos e comentários inspiraram o pequeno Kevin a cometer sua carnificina? Reflexões desse tipo a levam a um sentimento de culpa que cresce aos poucos, embora percebemos um esforço tremendo para a manutenção de seu amor próprio e para evitar a negação de si mesma, tentando destruir sentimentos de derrota. Ela assume responsabilidades de uma maneira muito elegante.
     Através desses sentimentos e dos detalhes desenvolvidos e comentados, Lionel Shriver acaba por esculpir um verdadeiro tratado sobre a maternidade: o que é ser mãe? As perdas que as mães sofrem por causas do filhos. As mães tem culpa pelos atos dos filhos? É pecado as mães odiarem os próprios filhos? Várias outras questões acerca da maternidade são postas em evidência. A cultura crescente dos assassinatos nas escolas são postas como pano de fundo para essas reflexões. O propósito do livro não é analisar o que leva os adolescentes a cometerem atos tão violentos. Ainda assim, em paralelo ao caso de Kevin, acabamos por conhecer, ao longo do texto, vários exemplos de casos históricos e reais de atentados, e a motivação dos executores; por mais irônico que possa parecer, essas foram algumas das poucas partes que eu me pus a rir durante o texto, e os comentários de Eva são muito bons.
     Além de tudo isso, o texto ainda reflete acerca o poder do medo sobre uma população frágil e ingênua, como é a população dos Estados Unidos da América. Quem já assistiu Tiros em Columbine, de Michael Moore, vai se lembrar dos comentários do cineasta a respeito da paranoia generalizada que o medo ocasionou.

     Enfim, um grande livro. Isso resume tudo e o resto é conversa. Boa leitura. 

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