domingo, 15 de fevereiro de 2015

RESENHA: O PINTASSILGO, de Donna Tartt

   

     Enquanto lia a última obra (a terceira em três décadas) da escritora norte-americana Donna Taart intitulado O Pintassilgo e lançada ano passado pela Companhia das Letras, fui sentindo a necessidade de mudar a estrutura de minhas críticas; ao longo da leitura, minha maneira de encarar o livro oscilou como raramente já acontecera antes, de modo que, terminada cada uma das 721 páginas do calhamaço, ainda não sei muito o que pensar dele, tampouco saberia lhe taxar uma simples nota numérica (aliás, cada vez mais acredito que essa maneira de avaliar uma obra de arte, sem defender o porque, é muito simplória e superficial, que muitas vezes serve apenas para dar vazão à uma arrogância crítica não muito intelectual). Espero que, escrevendo o texto que se segue, minhas reflexões se tornem mais soltas e abrangentes e estejam aptas a captar aspectos não percebidos durante a leitura, como aqueles raciocínios que só nos vêm quando forçamos nossa mente. Não estou querendo dizer que o livro seja genial ou complexo demais, pois não é; em muitos aspectos até deixa muito a desejar, e apesar de ser enorme, no final das contas é incompleto e superficial emocionalmente, cheios de vácuos nesse sentido. No entanto, este filho de Donna Taart contém alguns  outros aspectos muito interessantes e bem trabalhados. O equívoco e a genialidade andam lado a lado de mãos dadas aqui. Eu consigo perceber esses mencionados aspectos isoladamente, e por isso mesmo não estou conseguindo deter minha análise diante do quadro completo.

    Vamos começar pelo enredo, bastante simples. Donna Taart, em entrevista, disse que o que a motivou a escrever este livro foi uma reflexão que teve a respeito das obras de arte que se perdem ao longo da história por motivos fúteis. Eu mesmo às vezes fico me lembrando de peças incríveis para sempre perdidas do museu de Bagdá, ou nos pergaminhos da Biblioteca de Alexandria. É um pensamento que é bem colocado no comentário de Audrey Decker direcionado a seu filho Theodore, protagonista e narrador, bem no início do livro, em que ela comenta que "é deprimente como perdemos as coisas sem necessidade. Por puro descuido. Incêndios, guerras. O Partenon, usado como depósito de munição. Acho que o que quer que conseguimos salvar da história é um milagre". Então acontece uma coisa espantosa: uma explosão desencadeada por um atentado terrorista dentro do museu que mata a jovem mãe do pequeno Theodore e que só não o mata igualmente por um milagre. Assim, a morte da mãe representa um quadro para sempre perdido, mas que estará sempre presente no coração do jovem Theo, como a cópia de uma obra de arte capaz de evocar tanta emoção quanto a original (particularmente, eu gostei do comentário, mas achei forçado acontecer esse atentado depois de uma observação como esta, como que para dar um efeito dramático eficaz e definir uma temática, algo que Donna Taart evita ao longo do livro; curiosidade, pois é sempre bom fazermos paralelos entre as obras de arte e a nossa vida, há alguns anos, eu e uma amiga estávamos andando na rua de noite numa região perigosa, e quando comentávamos sobre os riscos de sermos assaltados, mais de um revólver foi apontado para a nossa cabeça segundos depois. Não, não acredito que induzi os astros a conspirarem contra mim pelo meu pensamento negativo, se por acaso algum leitor de O Segredo ler essas minhas palavras. De qualquer modo, eu estava num lugar em que o risco de assalto era grande, ao paço que a probabilidade de o museu onde Audrey e Theo estavam sofrer um ataque terrorista era mínima). Ao mesmo tempo, um senhor idoso ferido no atentado (Welty) induz Theo a resgatar o quadro O Pintassilgo (do qual falarei abaixo) e lhe dá um anel que o direciona a Hobie, um restaurador de móveis antigos de quem Welty era sócio, encontro esse que definirá uma grande parte do futuro do jovem (mas do qual não comentarei). No entanto, o medo de Theo de ser repreendido por "roubar" o quadro (em sua concepção seria punido e preso) faz ele guardar o segredo. O Pintassilgo, portanto, passa a ser uma obra-prima declarada perdida no atentado, e a cada ano que passa, Theo é invadido por duas espécies crescentes de sentimento de culpa, pela perda da mãe (pois não estariam no museu se não fosse problemas provocados por Theo) e pelo quadro. Tudo isso é narrado por uma pessoa claramente instável psicologicamente.

Carel Fabritius. O Pintassilgo.

     E esse é um dos pontos fracos do livro. O sentimento de culpa de Theo chega a irritar um pouco. Sua autoimolação é cansativa. Juro que me esforcei para colocar-me no ponto de vista do menino, de encarar a narração como obra de um rapaz com síndrome do transtorno pós traumático, mas é ruim demais sentir pena de alguém.

     Para mim os melhores momentos estavam quando Theo falava e interagia com os personagens ao seu redor, pessoas normais em situações corriqueiras, e gostei de ver como os detalhes psicológicos destes personagens foram inseridos, um aspecto que me fez reavaliar o livro de maneira mais positiva. Pois num momento (no início), temos um conhecimento muito superficial desses personagens (o que é natural se tratando do ponto de vista de uma criança traumatizada), mas anos depois, numa série de diálogos (o que acho muito apropriado; me lembrou muito os princípios narrativos de William Faulkner de só se saber sobre terceiros que não temos contato constante através do ponto de vista de uma outra pessoa), conhecemos melhor alguns dos personagens, embora alguns não sejam tão importantes para o andar da história (como é a história do senhor Barbour), e isso é muito bom. A vida não segue um roteiro pré-estabelecido, ela como um todo não está delineada como uma trama fictícia com início, meio e fim (algo que a autora aprendeu com Proust, a psicologia inserida e moldada no espaço), mas com inícios, meios e fins e outros inícios que se mesclam a outros inícios ou a outros fins e assim por diante. A vida é ramificada, assim como as relações interpessoais e os nossos momentos. A vida ramifica-se tanto para o futuro como provém de ramificações passadas.

Egbert van der Poel. Incêndio de Delft

     Outro ponto positivo do livro é a naturalidade dos diálogos. Não gosto de diálogos expositivos demais, a não ser que o diálogo seja narrativo. Muitas vezes, Theo fala em monossílabos. Isso foi criticado por algumas pessoas, mas o fato é que na maioria das vezes ele não tinha realmente nada para dizer. Falar por pura conveniência com qualquer pessoa, como fazem muitos dos personagens de Jane Austen, não faz parte de Theo e da maior parte da sociedade. Os diálogos no meio dos delírios com drogas pesadas em sua juventude transviada com Boris (seu melhor amigo no segundo ato da história) realmente parecem delirantes (lembrei-me do filme O Homem Duplo, de Richard Linklater).

     Além disso, é admirável perceber a vida própria dos personagens secundários. Por vezes, até "figurantes" se mostram complexos. Inclusive, em alguns momentos, eu pensava: "nossa, o Theo é um coadjuvante nessa situação, e o personagem principal não sabemos o que anda fazendo". Isso eu aplaudo. Genial.

    No entanto, é frustrante terminarmos o livro e sentirmos que pouco sabemos sobre a mente de seu protagonista. As vezes isso é um recurso para se criar uma aura mística sobre um personagem (de novo me referindo a Faulkner), mas aqui o misticismo sobre Theo não funciona pois a narrativa é desenvolvida pelo próprio, além de que ele faz questão de só nos mostrar seus pontos fracos, se tornando apenas um personagem vazio envolto em tristeza. Muitas coisas acontecem ao seu redor e ele se mantém passivo. Por um lado isso é irritante, mas por outro lado, realista.

Egbert van der Poel. Incêndio de Delft.


     Alguns críticos compararam o estilo de Donna Taart a Oscar Wilde. Só se for pela elegância no trato do texto, Esse é o grande ponto positivo do livro, o texto como forma é uma delícia, as metáforas são muito argutas e as descrições revelam uma escritora com muita capacidade técnica. Mas além desses elementos, Wilde se mostra presente no fato de que ele era dado a "moral da história" presente nas fábulas de Esopo e La Fontaine. O Pintassilgo também tem uma, e não vou contar qual é, apenas criticá-la: é uma moral muito óbvia e clichê, ainda que eficiente aos propósitos do livro.


     Até agora me concentrei nos aspectos técnicos do livro, mas não falei na questão de que o quadro O Pintassilgo, de Carel Fabritius, que inspirou o título, é um sobrevivente. Fabritius foi um pintor holandês discípulo de Rembrandt e mestre de Vermeer. Em 1654, o armazem de pólvoras da cidade de Delft explode, destruindo o bairro do artista num grande incêndio (outro mestre holandês daquela época, Egbert van de Poel, enlouquecido pelo incêndio de Delft, pintou variadas versões dessa catástrofe). Seu ateliê e a maior parte de suas obras foram destruídas (apenas 12 sobreviveram, além do perecimento do próprio artista aos 32 anos). Assim, percebe-se a correlação desse fato com a temática do livro. Não há sutileza nisso. Essas coincidências me soam antinaturais demais, e essa é uma de minhas maiores críticas a essa obra, que se pretende ser realista, embora entenda que tudo isso definirá a vida do narrador protagonista e lhe trará uma carga simbólica significativa. Assim como o quadro, Theo é o sobrevivente. Seria assim Theo o próprio Pintassilgo, preso nas patas por uma corrente (seria essa corrente autoinfligida ou deveríamos culpar os seus traumas nunca superados pela explosão) e tendo por destino a solidão?          


Donna Tartt.


     PS 1: Aqui vai um texto e entrevista muito interessantes sobre a destruição dos patrimônios culturais da humanidade no Iraque. Quem deveria responder por esses crimes em tempos de guerra? Óbvio que o debate se aplica a qualquer caso em que haja destruições desse tipo.

http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2003/jusp640/pag0607.htm

     

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