sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Em UMBIGO SEM FUNDO, Dash Shaw trás uma bela crônica familiar contemporânea em HQ

    

     Dash Shaw, aos seus 23 anos, escreveu e desenhou um livro digno de mestre, cheio de sutilezas emocionais permeado por um toque de humor sutil porém orgânico, nesta gigantesca história em quadrinhos de 720 páginas. Trata-se de uma excelente crônica familiar. A história em si é bem simples, e em 200 páginas se poderia desenvolvê-la com início, meio e fim. Mas se assim procedesse, ele jogaria fora o que sua obra tem de mais bonito, que é a poesia das situações, a análise pormenorizada do esfacelamento familiar digna, em muitos momentos, de filmes de Ingmar Bergman (a relação de Dennis com seus pais, sua natureza questionadora, conflitiva e atormentada em busca de respostas, me fez pensar nos embates entre mãe e filha em Sonata de Outono, filme do mestre sueco), retratando a individualidade de cada ente daquela família, individualidade esta que faz com que, a medida em que cada um tenta traçar a sua história, viver sua vida, mais afastados fiquem um dos outros. Ainda assim, ao final, sentimos uma esperança de que aquela família vai ficar mais unida de algum modo a partir de então, mas essa esperança é algo que fica em nossa mente, podendo muito bem ser falsa. 
     Umbigo sem fundo conta a história da família Loony (que remete a tolo, imbecil, idiota, em inglês), composta por David (o pai), Maggie (a mãe), e seus filhos Dennis, Claire e Peter. Essa é a primeira geração da família, retratada brevemente no início da HQ de maneira muito concisa e bem humorada. O início serve como um contraponto ao restante da história, pois tem o intuito de mostrar a diferença na dinâmica familiar em duas épocas distintas (e para mostrar que a personalidade de algumas pessoas evoluem muito mais que as outras). Logo em seguida, Shaw insere na segunda geração a esposa de Dennis (Aki e seu filho, ainda bebê) e a filha de Claire (Jill). Peter ainda não possui namorada nem filhos. E então, na fase adulta, cada um em seu canto no mundo, se reúnem novamente na casa de praia da infância para que seus pais façam um comunicado: após 40 anos de casados, David e Maggie, muito idosos, resolveram se divorciar, pois não se amam mais. A partir desse motivo, Dash Shaw explora seus personagens e suas atitudes após esta bomba com um olhar analítico, mas ao mesmo tempo, emocional. As pessoas reagem de modo diferente às situações. Como você reagiria a esta notícia? Entraria em busca de respostas e motivos concretos para a atitude de seus pais, como faz Dennis? Encararia calmamente a situação, como faz Claire? Se afastaria cada vez mais, como faz Peter? 
     Ao longo das páginas, nos envolvemos nos dramas de cada um dos personagens, criamos empatia e compaixão para com eles, mesmo quando percebemos o quão ridículos e imaturos eles estão sendo. Por exemplo, cito Dennis, obcecado em busca de respostas e ridicularizado de uma maneira implícita por simplesmente não aceitar a decisão dos pais, dá uma de detetive em uma investigação sem sentido ou futuro. Então, o que temos que analisar não são as ações dele, mas como elas representam sua psicologia, os sub-textos. Eis um exemplo de um diálogo muito interessante:

"Dennis: Não tem como explicar porque não faz o menor sentido! Porque só eu me preocupo com isso? Vocês não estão nem aí!!
Claire: Dennis, você sabe que isso é assunto DELES. Nós somos adultos agora.
Peter: É, a gente não é mais criança, de graças de estar acontecendo agora e não antes.
Dennis: NÃO, NÃO. NÃO!!!! Eu tenho INVEJA das crianças com pais separados. Elas são mimadas, vão ao psicólogo. Elas PODEM ficar tristes. Todo mundo aceita, até ENCORAJAM. Mas EU NÃO POSSO ficar triste? Porque aí vocês ficam me OLHANDO e acham que estou EXAGERANDO! Vocês não percebem que tudo isto é uma merda?" 

     Em relação aos traços, o HQ é simples, não busca a estilização. No entanto, não deixa de ser minimalista. A quantidade de quadros que ele usa para retratar uma cena aparentemente sem importância, como quando Aki tenta forrar a cama, mas não consegue, ou quando Peter vai fazer sexo pela primeira vez, serve para mostrar sutilezas nas expressões faciais, nas emoções. Em outros momentos, os quadros são usados para fazer rima poético visual interessante, por exemplo, quando ele usa, no início, um quadro por página para falar sobre os tipos de areia, e outra série, no fim, sobre os tipos de água. Areia e água: dois símbolos que unem aquelas pessoas, num aspecto memorialístico.  
     Umbigo sem fundo é uma obra-prima, cujo único pecado é a escolha de Shaw de escrever cada movimento (SENTA, COÇA, ESFREGA), mesmo quando ele está bem representado no quadro, e o fato de alguns personagens exclamar "Rá" tantas vezes. Mas é uma história envolvente e tocante. Vale a pena ser lida. É um reflexo de tantas famílias esfaceladas nos dias de hoje, das pessoas cada vez mais desapegadas de suas raízes. 

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