sábado, 1 de fevereiro de 2014

CRÍTICA: AZUL É A COR MAIS QUENTE (LIVRO E FILME)

     
     No início de janeiro, assisti ao filme Azul é a cor mais quente, do diretor franco-tunisiano Abdellatif Kechiche, e posso dizer com grande entusiasmo que foi uma das grandes experiências cinematográficas de minha vida como espectador. A belíssima fotografia em tons azulados que acompanhou a trajetória ao longo de alguns anos de uma mulher em suas descobertas como um ser humano em busca de aceitação, de carinho e de amor, explorando uma longa mas inesquecível jornada emocional e sentimental, entrou profundamente em minha alma. É um tipo de filme que serve como arquétipo para nós mesmo em muitos aspectos, nos faz olhar no espelho como nunca antes, e a opção estética do filme, além de ser coerente com o estilo de seu diretor em seus trabalhos anteriores (falarei mais a respeito) serviu muito bem especialmente para contar essa história,o que, para quem conhecia o trabalho de Abdellatif Kechiche antes de Azul é a cor mais quente e tivesse lido a novela gráfica de Julie Maroh que inspirou o filme, foi uma grande surpresa, pois ele não é tido a sentimentalismo nem artificialismo emocionais, e as alterações que ele fez em relação ao trabalho de Maroh são louváveis nesse aspecto.
     O filme e o livro conta basicamente a mesma história: Clémentine/Adèle (no livro e no filme, respectivamente) é uma adolescente que está no primeiro ano do ensino médio, e tem a necessidade de ser aceita pelos colegas. Esse é o início da história, que mostra a insegurança e a turbilhão emocional de todo adolescente. No caso, essa aceitação traria uma suposta estabilidade em seu meio social, mas isso significa seguir certos padrões de comportamento, e isso inclui - mais no livro que no filme - seguir uma opção sexual "saudável". Quando Clémentine/Adèle cruza com Emma no meio da rua, e depois de a reencontrar num bar gay (justamente em outro momento de descoberta para a personagem - a atriz se mostrou soberba em retratar a curiosidade reprimida de Adèle se desabrochando), e se envolver com ela, essa estabilidade cai por terra. O restante da história retrata o desenvolvimento do relacionamento de ambas, com momentos de altos e baixos. Um dos retratos mais verdadeiros sobre o amor.
     E aqui seguirei fazendo uma análise comparativa do filme e dos quadrinhos: percebe-se neste último, um tom panfletário que não me atraiu muito. Ao retratar o preconceito dos pais de Clémentine, Julie Maroh carregou em frases e textos expositivos, o que na minha visão, é deselegante e empobrece um pouco a história. As conversas de Emma e Clémentine sobre a importância do amor antes de qualquer preconceito, etc, soam didáticas (mas ainda assim são conversas bonitas). Já no filme, o tom é outro. Não se mostra qualquer tipo de preconceito, exceto numa cena da escola, em que uma amiga a ataca após descobrir sua sexualidade; no filme o motivo da briga tem uma diferença fundamental: enquanto nos quadrinhos a briga ocorre simplesmente por que se descobre que Clémentine é homossexual, no filme a briga ocorre por conta de que esta, por ser homossexual, poderia ter olhado para esta amiga com olhos sedentos nos momentos em que haviam dormido juntas. Essa pequena mudança tem por mérito tirar a panfletagem e qualquer resquício de maniqueísmo. Enquanto no livro a maior parte das adversidades e conflitos decorre por conta da tensão psicológica de Clémentine sobre si mesma em relação a descoberta de sua sexualidade, no filme os conflitos psicológicos ocorrem por conta da relação de Adèle e Emma, suas conversas (que se tornam bem mais interessantes e mais amplas que nos quadrinhos), uma tensão que surge por causa de uma certa incompatibilidade entre as duas no que concerne planos para o futuro (uma é mais ambiciosa que a outra, tem mais planos ousados) e até mesmo diferenças de conhecimento culturais, que traz até mesmo um tom de deslocamento, como quando Emma explica obras de arte e Adèle não sabe o que dizer. 
     O objetivo de Kechiche não foi fazer um filme sobre um romance gay, mas sim sobre o amor, independente de hetero ou homossexual. No livro, Emma fala: "se eu fosse um homem, Clémentine me amaria do mesmo jeito". No filme, ela não diz essa frase, mas Kechiche a explora como conceito, dando sua própria visão a respeito, nunca com diálogos expositivos, mas com as ações dos personagens e sub-texto dos diálogos, muitas vezes questionando-a até. 
      O filme é incrível em vários sentidos, pois tridimencionaliza os personagens, os explora como seres que não apenas amam, mas trabalham, comem, se relacionam com amigos, se divertem, dançam. Tudo isso é filmado de uma maneira crua, mas ao mesmo tempo é essa crueza, esse realismo, que enriquece a análise psicológica dos personagens. Cenas como Adèle e Emma fazendo sexo (as polêmicas cenas) de maneira tão intensa e carnal, Adèle comendo de boca aberta, se melando e sem o mínimo glamour, Adèle andando no meio da rua chorando e o escarro que lhe sai pelo nariz, que mela sua face, a cena em que ela come chocolate num momento triste, todas essas cenas são tão verdadeiras, mostram o drama verdadeiro da alma, e, essencialmente, têm uma coerência interna na opção estética do diretor. O drama de Julie Maroh, se explorados pelo filme, soaria piegas e clichê. O filme se tornou bem mais que simplesmente a "história de amor de Adèle e Emma", e isso justifica a mudança de título, que no original é La vie d'Adèle, que apesar de menos bonito que o título mais famoso, é mais coerente com a visão da história que Kechiche quis passar, pois ali está realmente retratado o desenvolvimento emocional de Adèle, o amor amoroso e o sexo fazem apenas parte destas descobertas. O amor verdadeiro nunca foi tão realisticamente bem explorado como ocorre aqui. Por isso este filme já pode ser considerado um grande clássico. Ele já mora em meu coração. 
     Quanto ao quadrinho, eu gostei também, mas é como disse, tem um drama artificial pela estrutura de como a história é contada (a cena em que Emma chega na casa de Clémentine lembra muito a cena em que um dos cowboys gays de Brokeback Mountain visita a casa dos pais de seu parceiro após a morte deste), e ao menos, uma cena muito ridícula, que é quando os pais de Clémentine descobrem a relação das duas. Agora, o que chama a atenção são os traços. Nossa, parece pintura, é incrível. O amor é muito bem retratado, é de uma sensibilidade inesquecível. O que eu tinha a mais para falar sobre o quadrinho já falei em outros momentos do texto. 
     Espero que minha resenha contribua para que vocês corram atrás dessa história, é uma grande aula de educação sentimental, e percepção sentimental é o que mais precisamos neste mundo cada vez mais difícil, introspectivo e egoísta. 
    
       

2 comentários:

Lú Rapozzo disse...

Sua resenha é ótima e descreve muito os pontos principais do filme. Do quadrinho não sei, pq não li ainda. Sua resenha me deu vontade de ler o quadrinho.

Continue assim ;)

Unknown disse...

Olá Lú Rapozzo tenho o livro completo em pdf basta mandar "💙" e te mando. Meu número é +55(62)9917-0593