Não há nada mais difícil que
mudar a visão de mundo, opiniões deturpadas, sedimentadas durante décadas, na
mente de um idoso, quando a necessidade de uma mudança de tal natureza se dê
mais pelas mudanças, ao longo dos tempos, de valores éticos e sociais
essenciais que regem o senso comum, que por qualquer outra coisa. Se levarmos
em consideração isso, poderemos apreciar o conto O Gerânio em toda a sua ambiguidade moral. Trata-se da história do
velho Dudley, um personagem pelo qual Flannery O’Connor magistralmente nos faz
sentir simpatia por adentrarmos na mente melancólica de seu idoso protagonista,
nos mostrando suas dificuldades de adaptação à cidade grande (Nova York, ele,
que vem de uma realidade campestre do sul dos Estados Unidos), seus anseios, suas
lembranças (qualquer objeto é um motivo para se lembrar de algo ou alguém de
sua realidade anterior, como, por exemplo, uma simples planta, o gerânio do
título, lembrar-lhe um menino com poliomielite, Grisby), as confusões mentais
da velhice, para logo em seguida nos surpreender com o enorme preconceito que
este guarda implacavelmente em seu cérebro. Entretanto, a sensação é que não o guarda
no coração. Suas lembranças de Rabie, um negro do sul, que o ajudava em suas
caçadas e pescaria, revelam certo carinho pelo amigo (que ele procura jamais o
chamar de amigo, que isso seria indecente por ele ser negro) e saudade, apesar
de ser uma saudade não declarada, não escancarada em palavras doces de saudade,
mas apenas reveladas pelas lembranças de bons momentos.
Assim, é assustador e surpreendente quando
Flannery nos revela um parágrafo como este:
Começou
aos berros: “Você não foi criada assim! Não foi criada para viver junto com
negros que pensam que são iguais a você. E depois ainda vem com essa, achando
que vou me meter com alguém dessa raça? Você deve é estar maluca, pra chegar a
cismar que estou querendo alguma coisa com eles” (...) Ele sabia que os
americanos do Norte recebiam negros pela porta da frente e permitiam que se
sentassem nos seus sofás, mas não sabia que sua própria filha, tão bem-criada
como tinha sido, fosse capaz de viver com eles na porta ao lado – achando ainda
por cima que ele perdera o juízo, que queria se misturar. Logo ele!
Mas o que fazer com um preconceito tão
enraizado na cultura sulista? Lembro claramente de outros livros que li, de
negros criados de brancos sentindo preconceito com pessoas de sua própria cor.
Assim, ao mesmo tempo que sentimos simpatia, como geralmente sentimos com os
velhinhos, sentimos raiva pelo preconceito (graças a Deus, apesar de ainda
existir muito racismo aqui no Brasil, não chegar aos níveis do sul dos Estados
Unidos, ilustrado por organizações como Ku Klux Klan e pela segregação racial
dos anos 1960 – e por isso é de se admirar o trabalho de Martin Luther King
frente a essas adversidades).
Esse conto nos revela que o ser humano é
mais complexo que seus preconceitos.
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