quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Resenha: O MUNDO PÓS-ANIVERSÁRIO, de Lionel Shriver

     

     Uma vez, em meu aniversário de 16 anos (2005), quis comemorá-lo de uma maneira simples, passando o dia com minha melhor amiga naquela época, e por quem eu estava muito apaixonado. Ela também estava apaixonada por mim, mas a nossa timidez mútua para encarar os sentimentos nos custou muito. Nesse dia, ela tomou coragem e me convidou para que eu sentasse ao seu lado em um banco para podermos conversar mais intimamente. No entanto, eu não aproveitei a oportunidade de beijá-la; ao invés disso, não sabia o que dizer, estava muito nervoso e tentava disfarçar. Ainda me lembro do olhar de decepção  e constrangimento dela quando desistiu daquele momento e convidou-me para ir com ela ao apartamento, onde estavam seus familiares. Com o decorrer do tempo, nossas vidas tomaram rumos opostos e perdemos contato. Às vezes ainda penso nela, de maneira nostálgica. Pergunto-me: e se tivéssemos nos beijado? O que teria hoje o Gabriel dessa realidade alternativa de diferente do Gabriel que ora vos escreve? Seria a alternativa melhor que a realidade?  
     O Mundo Pós-Aniversário é o segundo livro que leio da autora Lionel Shriver. O primeiro foi para mim o já jovem clássico Precisamos Falar Sobre o Kevin (2003), em que ela analisava as questões mais espinhosas a respeito da maternidade com uma intensidade brutal mas delicada ao mesmo tempo. Igualmente neste livro, publicado em 2007, Lionel explora um outro tema extremamente humano a fundo: o casamento. Ainda não li o Dupla Falta, que é um outro livro a respeito de casamento escrito por ela, mas sei que os enfoques são diferentes. Dupla Falta retrata a respeito da competitividade dentro de um relacionamento, e sei que os personagens não são flores que se cheirem, pelo que andei lendo da resenha de amigos. O Mundo retrata, por sua vez, as imperfeições mais visíveis dos relacionamentos, não importa que caminho trilhemos em busca da felicidade: a realidade é sempre menos fantásticas que as nossas projeções idealizadas. Talvez seja justamente por idealizarmos nossa realidade que tendemos a imaginar como seria nossa vida se tivéssemos tomado certas decisões no passado, que, olhando em retrospecto, ilusiona a existência de uma felicidade plena em qualquer que seja o âmbito desejado, seja o profissional, seja o sentimental. Lionel já corta secamente nossas expectativas, esfregando na cara do leitor, já na abertura, um fato que tendemos a esquecer quando nos é conveniente: "ninguém é perfeito". Se ninguém é perfeito, o mundo também não o é, e os relacionamentos menos ainda. Onde quer que haja pessoas, há imperfeição, independente de qual seja o mundo alternativo que prefiramos nos apegar. Mas claro, é saudável imaginar um mundo perfeito em que tivéssemos tomado decisões corretas que proporcionariam consequências sempre benéficas para nós, desde que excluído qualquer resquício de sentimento de culpa por justamente não tê-las tomado. 
     Irina McGovern, uma ilustradora de livros infantis e protagonista do livro, se vê justamente nesse impasse. Morando junto com seu companheiro de longa data Lawrence Trainer -- analista do terrorismo mundial num instituto de estudos estratégicos, homem verdadeiramente culto, porém meticuloso, pouco sociável e que não sabe expressar muito bem seus sentimentos, sendo no entanto extremamente amoroso e leal a sua companheira -- Irina se sente tentada a beijar Ramsey Acton, um amigo do casal, jogador extremamente popular de sinuca, um homem charmoso e cheio de excentricidades, mas ainda assim, um bom homem a sua maneira. A partir de então, o romance se bifurca em duas realidades. Em uma delas, mostra-se as consequências dela ter cedido à tentação; na outra, mostra-se as consequências de não o ter feito. É mérito da ficção excluir a premissa de que uma versão é menos ou mais real do que a outra. Na verdade, não existe realidade na ficção, e sim, verossimilhança, o que não falta para as duas alternativas. Lionel é mais pé no chão que aqueles documentários pseudo-científicos sobre física quântica na abordagem dessa questão de alternativas paralelas (sem desmerecer a física quântica real e verdadeiramente científica). Sempre, nas duas alternativas, Irina se pergunta "e se tivesse feito o oposto do que fiz?", mostrando justamente a imperfeição de suas realidades. Ambas as alternativas trarão bençãos e sofrimentos diferentes, e em nenhum dos casos, há lugar para arrependimentos eternos e martirizantes.
     Lionel Shriver tem uma habilidade extraordinária para criar personagens complexos e limitados, e por isso mesmo, nos perturba pelo quanto temos de parecidos com eles (surpreendentemente tenho muitas sensações e pensamentos em comum com os três personagens principais). Seus personagens tridimensionais servem como espelho para seus leitores. Todos têm qualidades maravilhosas e defeitos assustadores (as vezes incomodamente repugnantes). Não somos assim? 
     Além dos personagens, tenho que falar da prosa da autora. Percebi algumas características marcantes dela, fazendo comparações com o Kevin. Por exemplo, ela estabelece muito bem as profissões de seus personagens, tirando daí cenas interessantes. Todos os personagens são fluentes no ramo profissional que escolheram para si, e as vezes eles não conseguem entrar na mesma sintonia por conta disso, sendo constrangedoramente incompreensíveis uns aos outros, embora sempre haja um esforço para reverter esta situação. Não sou muito fã de livros com muitos diálogos, isso porque geralmente os acho superficiais e antiliterários, mas bato palmas para os criados por Lionel, que tem uma fluidez invejável, conseguindo abordar sentimentos os mais variados de maneira nada superficial. É curioso como ela consegue criar tensão abordando temas tão diversos, como num determinado momento, em que há um diálogo em que se discute a respeito da história da sinuca e o movimento do IRA. A prosa é outro ponto chave. A autora é muito perspicaz em suas observações psicológicas a respeito dos sentimentos, e explora a natureza humana mais eficazmente que em Kevin, empregando tons que variam do ácido ao agridoce, sempre de maneira muito orgânica. Além disso, ela consegue manipular nossas opiniões com uma destreza única. Lionel não alisa nossa falta de consciência; antes, a esmaga com uma martelada poderosa.   
     Por outro lado, o livro também tem seus pontos fracos. Na verdade, são mais excessos que defeitos. Há um cem número de vezes em que Irina compara os sotaques norte-americano e britânico. Além disso, percebi ser uma tendência da autora situar suas histórias em momentos do passado, para que ela possa fazer comentários a respeito de alguns temas, como a morte da Princesa Diana, a traição de Bill Clinton a Hillary Clinton com a estagiária Monica Lewinsky, sua negação a respeito desse caso, a natureza conveniente desse casamento, a questão da ascensão do terrorismo, a queda do World Trade Center, etc. Não acho que Lionel não tenha feito comentários espirituosos a respeito desses vários temas, mas as vezes sinto que ela usa o passado para manter uma margem de segurança a respeito dos temas que aborda sem cometer grandes gafes. Parece-me meio covarde, como se ela tivesse receio de não ser capaz de abordar temas atuais com proficiência. No entanto, creio que é só minha impressão. A autora é colunista no jornal britânico The Guardian. Se ela de fato tem essas limitações, está só na cabeça dela. 
     Recomendo fortemente esse livro. Ele nos amadurece emocionalmente. A visão a respeito do amor nunca mais será a mesma. Nos trás muita humanidade e nos faz pensar nas nossas próprias limitações no que concerne aos relacionamentos amorosos. Um livro poderoso.                 
       

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