sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Resenha: A TERRA INTEIRA E O CÉU INFINITO de Ruth Ozeki

   

     Tudo está conectado. Essa é uma ideia clichê explorada em vários meios artísticos, mas ao tratá-lo de um jeito tão simples, Ruth Ozeki brilha e inova ao enfocar a conexão quase mística que se forma entre o escritor e seu leitor. Assim, Ruth Ozeki (a personagem, não a autora, que é o autorretrato desta, ou seja, apenas uma representação da pessoa real, não a própria) se conecta a Naoko Yasutani, uma adolescente de 16 anos japonesa; a própria Naoko faz o mesmo com o seu tio avô Haruki, que tem o nome igual a de seu pai (o que é uma belíssima escolha da autora, pelos conflitos de consciência similares que ambos enfrentam, e que todos nós deveríamos enfrentar, pois a falta de ética cada vez mais toma conta desde cedo dos indivíduos em sua singularidade quanto reunidos em massa), este se conectando (e aparentemente enlouquecendo) com cabeças da filosofia mundial. Mas o livro é muito mais do que isso. Em suas páginas, A Terra Inteira e o Céu Infinito expõe temas urgentes e fundamentais em contrastes gritantes, por vezes de forma cortante e explícita, em outras ocasiões mais delicadamente, explorando uma diversidade de estados de espírito em seus personagens, que vão ao fim do túnel sem luz aparente até um vislumbre do que seja a iluminação que os budistas tanto almejam, mas que não se frustram caso não a atinja. No fim das contas, a maior conexão explorada por Ruth Ozeki é aquela que nós leitores temos para com seus personagens. Será a literatura capaz de mudar a vida de seus leitores?
     Duas histórias paralelas são traçadas inicialmente. A primeira diz respeito a Ruth, escritora americana filha de japoneses que num belo dia encontra nas areias da praia da ilha remota em que habita (Whaletown, Columbia Britânica, Canadá) um saco plástico cheio de cracas no interior do qual há uma lancheira da Hello Kitty; nela, descobre-se o livro Em Busca do Tempo Perdido (uma de minhas paixões literárias, aliás) de Marcel Proust, cujo miolo se revela, na verdade, uma narrativa de Naoko Yasutani, a adolescente japonesa mencionada no parágrafo anterior, surgindo a partir daí a dúvida inicial se de um diário ou ficção se trata (até que limite nossos diários se tornam ficções de nossas próprias vidas ao, além da narração de fatos, os ilustrarmos com metáforas pictográficas e explorarmos variadas figuras de linguagem, enriquecendo a matéria bruta com a habilidade particular no jogo das letras a desvendar nossos estilos? Até onde o fluxo da consciência reverencia o ser real que os cria no momento em que está acordado, concentrado na realização do ato de viver?). Através da leitura de Ruth e das notas de rodapé que ela desenvolve a respeito das páginas manuscritas da menina, acompanhamos a trajetória de uma jovem insegura, cheia de conflitos normais de sua idade, mas que encontra um ambiente hostil tanto no próprio lar como na escola. No seio de sua família, a hostilidade é devida ao clima de negação gerado por um pai suicida e uma mãe que sofre calada. É uma família disfuncional digna de figurar como estudo de caso num dos livros mais que repetitivos de Augusto Cury, para quem tudo no final das contas tem uma solução simples. Mas o livro torna claro que não há soluções simples: não é possível viver plenamente de acordo com as diversas variáveis de nossas existências, talvez não seja nem ao menos saudável ser bem adaptado a tudo que nos ronda, configurando apenas um paço para a submissão. Já a opressão da escola é devido ao tradicional (nada mais chocante do que utilizar tal adjetivo para caracterizar algo tão vil e covarde, mas, na linha de análise de Hannah Arendt, banalizado) bullying, físico e psicológico. Para a garota, só lhe resta o SUPAPAWA (leia o livro que vai entender) para enfrentar seus problemas, em contraposição a uma atitude simples de executar o suicídio pelo qual é friamente obcecada... Até que ela se conecta ao seu tio avô através de cartas e diários escritos por ele, o piloto camicaze morto para alimentar a catástrofe de uma derrota iminente numa guerra estúpida movida por egos patrióticos (nada há de mais inconsequente que alimentar fanaticamente o amor uma bandeira, independente do que ela simbolize, seja um time, uma pátria ou uma religião). A conexão que a ela faltava para começar a mudar sua vida, se permitindo antes de tudo mudar suas opiniões, amadurecendo seu ponto de vista (algo saudável que muita gente tem medo de fazer pelo simples ego de não quererem estar erradas, embora às vezes nem seja propriamente uma questão de certo ou errado).
     Por outro lado, Ruth tem que se conectar com seus amigos e vizinhos da ilha onde mora, pessoas em geral afeiçoadas à solidão, para desvendar os segredos que ela não é capaz de decifrar sozinha. No fim das contas, Naoko se tornou uma força motriz para a ação de fomentar laços de amizade e cooperação alheia. Ela não seria jamais incluída na lista das pessoas mais influentes da história, mas essa pequena influência na vida de um tão minúsculo número de pessoas já é uma vitória na vida. A sensação de uma vitória distinta da de um ego megalomaníaco. Às vezes eu me pergunto se minha existência será capaz de inspirar alguém, de trazer algo significativo para o mundo, se a minha curta existência neste mundo terá alguma relevância. Mas, prefiro não buscar uma resposta para estas dúvidas. Tenho apenas que viver.
     Não se pode esquecer de mencionar a velhinha Jiko, de 104 anos, a bisavó da adolescente que depois da morte do filho camicaze  refugiou-se como monja budista num templo com a finalidade de orar para que as pessoas encontrem o caminho do meio que define a iluminação espiritual da tradição budista (confesso que sou adepto de tal conceito, nada melhor do que evitar os extremismos). É a respeito dela que Nao resolve escrever em seu diário, mas falha, explanando apenas um breve perfil biográfico e a descrição da relação das duas. Muita coisa fica em aberto, e é louvável (e poético) que no fim do romance a menina admita o fracasso de sua empreitada e revele que possa vir a escrever a biografia em questão nas páginas em branco inseridas na carcaça do livro O Tempo Reencontrado, o último volume de Em Busca do Tempo Perdido (esta revelação por minha parte garanto que não prejudicará a fruição do livro). Você nunca teve um momento em que, ao relembrar o passado, reencontrou, dentro do coração daquele ser que um dia já foi você mas que já não o é pelas barreiras que o tempo impôs, mas que somente às lembranças é dado a faculdade de transpôr, respostas há muito esquecidas para os seus tormentos e angústias?
     A autora tem um grande domínio de sua narrativa, concatenando as narrações em primeira e terceira pessoas de maneira eficiente e elegante. O contraste entre a espontaneidade da linguagem de Naoko e o distanciamento no dia a dia de Ruth tem seu valor estético. Os contrastes são elementos importantes de nossas vidas em si. Uma vida boa é feita de altos e baixos, o que tem-se que fazer é encarar tal fato, não ter medo dos fracassos e se orgulhar das conquistas, por mínimas que sejam. Porém o que ocorre na maioria das vezes é o repúdio ao erro, evita-se comentar sobre ele, odeia-se quem o faz recordar de um momento tão inoportuno... no final  das contas este é o maior erro que se poderia cometer: esquecer do que não lhes convém, ainda que isto seja fatal. Nossa incapacidade em massa de tirarmos lições valiosas do passado é a nossa ruína. Quando Platão escreveu sobre Atlântida, a cidade perdida, contou algo a respeito do progresso ganancioso que precede o declínio catastrófico. Dessa lição certos políticos e empresários riem, debocham, se fecham às lições das histórias, e perseguem quem vai contra a corrente nociva que formam.
     Além de todos esses dilemas éticos e existenciais que permeiam o livro, há vários outros elementos que se encaixam de maneira orgânica às visões espirituais de Ruth Ozeki, como mecânica quântica, paradigmas físicos como O Gato de Schrodinger, entre outros. Nada é utilizado de maneira gratuita neste livro, o que é muito bom. Espero que curtam como eu curti. É um livro que eleva nossa consciência moral e emocional.

         

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