quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Resenha: ABSALÃO, ABSALÃO!, de WILLIAM FAULKNER



     Hoje trago a resenha de um dos livros mais marcantes que já li, uma obra-prima absoluta, cheia de simbolismos e belas construções estruturais, rítmicas e poéticas. Foi um dos mais difíceis que já tive o prazer de encarar, mas, após virar a última página, me senti recompensado por ter conseguido compreender o panorama geral da história contada, porém pleno da consciência de que, para capturar os detalhes e o significado de toda a poesia que o texto encerra (em especial os capítulos narrados por Rosa Coldfield, poetisa ela mesma, e portanto, as partes mais expressivas, dolorosas e belas, e, talvez também por ter sido a única narradora que vivenciou parte da história do livro, não confiável), terei que fazer uma releitura em breve. Creio que não será um esforço em vão: os verdadeiros clássicos merecem esse tipo de atitude por parte de seus leitores. Este é um tipo de livro que numa revisão descortina muitos dos mistérios que rondam os personagens ao mesmo tempo que novos símbolos vão brotando de suas ruínas. Sim, é um livro extremamente simbólico, e no entanto, continua sendo muito difícil para mim interpretá-los devidamente.
   
     Para começar, precisamos de algumas notas biográficas a respeito do autor nos aspectos importantes para compreendermos a ambição de seu projeto. William Faulkner nasceu 30 anos após a Guerra da Secessão, quando o Sul dos Estados Unidos da América, de cultura escravocrata, autodenominado Estados Confederados da América, foi derrotado pelo Norte abolicionista liderado por Abraham Lincoln (quem já viu ...E o Vento Levou sabe do que estou falando). Com isso, Faulkner pôde observar, enquanto crescia, a ruína de muitas famílias aristocráticas pelo fim da mão de obra escrava. Seu ambiente natural serviu de laboratório para sua aguda percepção psicológica e para o aflorar da sensibilidade expressa em suas obras vindouras. Os conflitos em realidades decadentes podem trazer junto a si uma força matriz que impulsiona a criação de grandes obras para quem se permite aproveitar as oportunidades e enfrentar as fortes ondas opositoras, e Faulkner aproveitou-as muito bem, assim como Flannery O'Connor, Carson McCullers, Katherine Anne Porter e Eudora Welty também o fizeram e como tantos autores sulistas ainda hoje o fazem, explorando alguns temas em comum, como o preconceito racial intransigente que mora nos poros brancos naquelas bandas (que permitiu a criação da Ku Klux Klan, cuja força persistiu por tanto tempo), os quais foram taxados, creio que indevidamente (sempre tenho problemas com taxações), de estilo gótico sulista, pois na verdade só o que há é uma confluência temática, sendo os estilos literários os mais variados. Com o objetivo de reconstruir à sua própria maneira essa realidade decadente do Sul dos Estados Unidos, Faulkner criou um condado fictício chamado Yoknapatawpha (que significa Terra Dividida no idioma indígena Chickasaw), no Norte do Estado do Mississipi, sendo Jefferson sua principal cidade. Segundo vários estudiosos, Yoknapatawpha é inspirado no Condado de Lafayette, onde Faulkner viveu grande parte de sua vida, sendo Oxford sua principal cidade e modelo para Jefferson. Nesse condado imaginário o autor compôs a ação de grande parte de suas obras, algumas delas verdadeiras sinfonias literárias.
   
     Absalão, Absalão! é um crônica familiar que abarca a trajetória de Thomas Sutpen e de seus filhos, do apogeu até a derrocada de sua estirpe. São quatro os narradores do livro, cujos pontos de vistas de um mesmo fato ora se complementam, ora se contradizem: Rosa Coldfield, irmã de Ellen Coldfield (esposa de Sutpen e mãe de Henry e Judith) conta a Quentin Compson (personagem do livro mais famoso de Faulkner, O Som e a Fúria) sua visão da história; Quentin ouve de seu pai outros fatos relacionados (relato de segunda mão direto da narração do avô de Quentin); já Quentin debate com seu amigo da faculdade, Shreve, a respeito do que apreendeu daquilo tudo e criam juntos suas conclusões do quebra cabeça: quais teriam sido a motivação para Thomas Supten ter agido como agiu, expulsando os índios de suas terras e construindo a Vila Sutpen a base do escravagismo? De que aspectos de seu passado ele tentava fugir ao chegar em Yoknapatawpha, e como ele conseguiu tanto poder? Porque ele tinha tanta necessidade de procriar? (encarava seus descendentes como seu legado?) Quais os aspectos que rondam seu declínio e morte? Que motivo levou seu filho Henry a matar seu amigo Charles Bon, noivo de Judith, e quais foram as circunstâncias desse assassinato?

     Ao contar o livro dessa maneira, Faulkner cria muito mais do que uma sucessão de fatos. Na verdade, estes são expostos já no início, mas de maneira obscura. A obscuridade dá luz a mitos a respeito de qualquer coisa, e não demora muito para ares míticos rondem a história dos Sutpen, sendo salientados pela tragédia pessoal de cada um de seus membros, que assume uma grandeza poucas vezes vistas. Quantos mitos familiares você tem na sua família, no que diz respeito a seus avós e bisavós não mais presentes? O quão histórias, que poderiam ser apenas trivialidades discutidas sem nenhum propósito, engrandecem pela óptica do mistério e da ambiguidade? Assim, a partir desse clima, são narradas cenas belíssimas de uma verve dramática surpreendente, como os momentos de fome e invasões durante a guerra; os comentários de Bon a respeito da prostituição das mulheres negras; os (anti) diálogos de Bon e Henry são uma criação de gênio ("ele não poderia ter dito que..." + a fala dos personagens.).

     Faulkner emprega aqui a maravilhosa técnica do Fluxo de Consciência (também extensivamente explorada por Clarice Lispector) de uma maneira muito original e proficiente. As divagações de seus personagens flutuando no tempo e no espaço nunca soam gratuitas e estão inteiramente ligadas à narrativa, servindo para criar, junto com um senso de poesia impecável, uma atmosfera lírica e sombria ao mesmo tempo, erguendo, a partir de cinzas espalhadas pelo vento, edifícios inteiros e entremeando-os com a complexidade de suas bases, mas permitindo a entrada da luz do sol pelas suas janelas, apenas esperando que o momento dessas mesmas estruturas desabem sobre o solo, impedindo a luz de continuar a cruzar a janela, pois não mais existe: cinza e poeira novamente surgem dos destroços. Quem vai reconstituí-los?

     PS: A Editora Cosac & Naify finalmente relançou a obra numa belíssima edição, depois de mais de 20 anos. Achei que tinham desistido de relançar a obra completa de Faulkner depois do fracasso de vendas dos títulos até então lançados. Nem sempre os mestres são reconhecidos, infelizmente. Um Nobel valoriza a obra de um autor, mas não a torna necessariamente um sucesso de público. Faulkner escrevia para quem gosta de ser desafiado. Espero que William Faulkner seja mais valorizado no futuro, e que a nova edição sirva para isso. Já estou indo comprar a minha para fazer comparações entre as traduções.      

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