segunda-feira, 21 de abril de 2014

RESENHA: CONTOS DE VIRGINIA WOOLF - PARTE 1

     

     Ao se ler resenhas alheias de livros de contos, geralmente vejo uma abordagem genérica do que foi lido, a fim de sintetizar a experiência em poucas linhas. No entanto, os contos de Virginia Woolf são tão ricos em estilo e simbolismo, que decidi por resenhar o mais breve possível conto por conto, mas claro, dividindo-os entre várias postagens. Esta primeira dará conta dos primeiros cinco da escritora inglesa, todos de 1906.
   
     PRIMEIROS CONTOS:

     PHYLLIS E ROSAMOND (1906)

     Primeiro conto de Virginia Woolf, Phyllis e Rosamond é um trabalho dos mais simples da autora, o que é natural como primeiro trabalho, tendo em comum com os seus seguintes textos apenas o requinte estilístico, porém sem o hermetismo tão característico de grande parte de sua obra. Não achei genial, apesar de não deixar de ser bom, principalmente em sua abertura e na cena da conversa entre Phyllis e Sylvia.
     Algumas opções na história, na minha humilde opinião, não foram as mais acertadas: a impressão que tive é que Virginia quis seguir por um caminho e enveredou por outro; como ela não revisou seus primeiros cinco contos em nenhum momento de sua vida, eles ficaram como ficaram, sendo este o que mais sofreu pela falta de uma segunda olhada. Primeiramente, ela dá a entender que fará um "estudo de caso" sobre cinco irmãs: "São cinco filhas, todas mulheres, (...) duas irmãs se opõe a duas, e a quinta vacila uniformemente entre as duas." Se opõe por conta da natureza fútil de Phyllis e Rosamond em conflito silencioso com o espírito acadêmico das outras duas (que não têm o nome revelado, assim como a quinta filha). No entanto, o texto toma outra direção, apesar de claramente, em relação a sua temática, Virginia demonstrar exatidão na questão que pretendia abordar: as irmãs inominadas não interferem em nada na história, sendo só um detalhe insignificante; bem que poderia servir como um sub-texto, uma espécie de contraponto à visão que Phyllis e Rosamond têm em relação a si mesmas, a revelação do autoconhecimento que têm de sua mediocridade, mas todo esse efeito de espelho se dá por conta de Sylvia, uma pessoa estranha para as duas irmãs por, ser culta e refinada além das aparência, contrapondo suas personalidades fúteis. Phyllis e Rosamond bem poderiam se passar por personagens secundários de certos romances de Jane Austen (me vem à mente Lydia Bennett e sua mãe, de Orgulho e Preconceito, diferindo destas simplesmente pela autoconsciência, mas que possuem os mesmos valores fundamentais antiquados em relação a questão da mulher, do amor e do casamento). 
        A abertura do conto é bem interessante se levarmos em conta que quase imediatamente ela escreveria uma outra história curta, O Diário de Mistress Joan Martyn (resenhado abaixo) em que ela fala sobre a necessidade de se documentar a vida. O início caberia muito bem no referido conto, justamente por ele falar mais diretamente de resgate histórico. Eis o trecho.
     "Nesta época tão curiosa, quando já começamos a necessitar de retratos de pessoas, de suas mentes e sua indumentária, um contorno fiel, desenhado sem mestria, porém com honestidade, é bem capaz de ter algum valor.
     Que cada homem, ouvi dizer outro dia, ponha-se a anotar os detalhes de uma jornada de trabalho; a posteridade há de ficar tão contente com o catálogo quanto ficaríamos nós, se tivéssemos um tal registro de como o porteiro do Globe e o homem responsável pelos portões do Park passaram o sábado, 18 de março, do ano da graça de 1568."
     

     O MISTERIOSO CASO DE MISS V. 

     As três páginas que comportam este conto se revelaram bastante curiosas e ricas em simbolismo, revelando (ao menos para mim) três possibilidades de interpretação diferentes, de acordo com a maneira como encaramos a Miss V. da história. Afinal quem seria essa tão obscura Miss V.? Quem se aventurar a ler o conto perceberá que a referida personagem é tratada de duas maneiras diferentes: inicialmente por Janet V. e posteriormente de Mary V. São duas personagens diferentes? A autora narra as coisas de um modo que acreditemos que não, e tal intercambio de nomes é narrada da mesma maneira sem mais explicações, como no romance Orlando o protagonista, inicialmente homem, se converte em mulher. 
     Mas Virginia não facilita para seus leitores, criando, logo no início, palavras que ao mesmo tempo não parecem dizer nada, mas que servem como chaves para dar luz a uma nova interpretação: "uma história como a dela e a irmã - mas é típico que, ao se escrever sobre elas, um nome pareça instintivamente servir às duas". Ou seja, poderemos pensar que Mary e Janet, apesar de serem tratadas como uma só, são irmãs; além disso, podemos especular que a própria narradora do conto é Janet, visto que "um vínculo de sangue - ou do fluido que porventura circulasse nas veias de miss V. - fez com que meu destino particular fosse dar com ela". 
     Por outro lado, tal troca de nomes pode ser simplesmente pelo fato de miss V. ser tão isolada do mundo; a narradora, por falta de grande convivência, talvez tenha confundido o nome da referida senhora. Creio, porém, que esta interpretação é desprovida de verdade, servindo só para simplificar por pura preguiça mental uma história tão rica em possibilidades. 
     O conto tem como tema aquelas pessoas que, mantidas à parte dos círculos sociais, se tornam uma espécie de sombra. As vezes eu sinto que sou uma sombra para aqueles a quem não permito aproximação ao fundo de minha intimidade, um borrão na memória de amigos distantes; muitos seres de meu passado igualmente se tornaram sombras, que, dia após dia, se fragmentam em manchas disformes. No entanto, Virginia personifica o motivo sombra além das impressões da memória: "seguir os passos da sombra, ver onde é que ela vivia, se é que vivia mesmo, e conversar com ela como se fosse uma pessoa igual ao resto de nós!"; "... e eu já começava a me perguntar se as sombras morrem e como poderiam ser enterradas". 
      Eis um conto bem elaborado! Já li e reli inúmeras vezes e sempre aprecio a sutileza de Woolf, sempre capaz de me desafiar.

     O DIÁRIO DE MISTRESS JOAN MARTYN

     Aparentemente Virginia Woolf era apaixonada pelo resgate histórico, como já comentado, e esta paixão fica ilustrada evidentemente aqui. Inicialmente, temos a narração em primeira pessoa por miss Rosamond Merridew, uma historiadora que investiga o sistema de posses de terra na Inglaterra medieval, e que, em suas pesquisas, acaba por passar pela estrada de Thetford após uma expedição infrutífera na abadia de Caister, onde procurava documentos. Na referida região acaba por encontrar um pequeno solar medieval, habitado por descendentes dos donos originais. Lá, ela acaba por descobrir o diário do título, e então, as páginas restantes são as narrações de Misstress Joan Martyn, feitas no ano de 1480 (claro, tudo fictício). 
     Creio que a intenção da autora aqui foi mostrar a condição feminina na idade média, como era o universo monótono das mulheres de família, sua falta de liberdade para se poder escolher o próprio caminho, a visão de que a mulher é feita para o casamento e para os filhos (de novo esse tema). Ela utiliza de percepções simplórias, mas bastante intimistas, de Joan Martyn, para questionar os valores da época de Virginia no que se refere à mulher, visto que a situação feminina ainda fossem bastante similares em ambas as épocas, numa sociedade em que, como disse Leonardo Froés (tradutor deste livro) numa palestra, apesar de ter uma rainha, culturalmente era irritantemente masculinizante, onde autoras tinham que usar pseudônimos masculinos para serem valorizadas (Jane Austen, Emily Bronte e George Eliot, para citar algumas usaram desta tática para chamar a atenção).
     O estilo desse conto é incrivelmente simples, mas ainda assim tem a elegância de sempre de Virginia Woolf.

     UM DIÁLOGO NO MONTE PENTÉLICO 

     Tendo como local de ação o Monte Pentélico, situado a nordeste de Atenas, onde se encontra o Partenon, Virginia aqui destila ironia e acidez frente à prepotência inglesa de se acharem o dono do mundo, e de se proclamarem como aqueles a quem a cultura clássica certamente tem mais a dizer. O primeiro parágrafo ilustra bem todo o conto:
     "Aconteceu, e não há muitas semanas, que um grupo de turistas ingleses desceu a encosta do Pentélico. Eles porém teriam sido os primeiros a retificar esta frase e assinalar  o quanto de inexatidão e injustiça se continha nessa descrição de seu grupo. Porque chamar um homem de turista, quando o encontramos no exterior, é definir não apenas suas circunstâncias, mas também sua alma; e suas almas inglesas, teriam dito, não estavam sujeitas a limitações desse tipo. Os alemães são turistas e os franceses são turistas, mas os ingleses são gregos."
     Basicamente o texto foca nessa crítica ao "espírito acadêmico inglês", que, se consideram mais conhecedores da cultura grega antiga que os próprios gregos por vestirem roupas muito mais sofisticadas que as destes, além de acreditarem que os próprios gregos contemporâneos não são embutidos do antigo espírito clássico de seus antepassados. 
     O que chama a atenção é o diálogo do título, que é escrito de um modo muito pouco usual. Não há um personagem falando após o outro como vemos usualmente, mas sim diálogos entremeados a longas narrativas que se entremeiam com os mais diversos pontos de vista de não se sabe quem, pois, apesar de sabermos que são cinco personagens, a autora não os distingue, tornando os debates e rebates muito subjetivos, não procurando uma conclusão temática dos diálogos, mas sim, implantar perguntas e reflexões. Virginia não é uma autora de respostas simplórias. 
     Interessante é o comentário que ela faz no conto d'O Diário de Mistress Joan Martyn, que pode-se fazer um paralelo interessante ao presente conto: "se aplicássemos na escavação de nossas próprias ruínas uma ínfima parte do que gastamos anualmente para escavar cidades gregas, quantas coisas diferentes o historiador teria a contar."   
     Trata-se de um conto no mínimo muito interessante.

     MEMÓRIAS DE UMA ROMANCISTA 

     Este, junto com O Misterioso Caso de Miss V., foi o meu conto predileto até o momento. Aqui a narração brinca com o tema da escrita de uma biografia pelo fato dela questionar constantemente até onde os pontos de vista da biógrafa e seus artifícios literários afetariam a integridade dos fatos da vida da biografada. A narração do conto - que por consequência de sua estrutura mantém três pontos de vista que não só se cruzam, mas se intercomunicam e se complementam - é extremamente racional, analítica (e psicanalítica), parecendo querer se manter imparcial, mas que se permite em certos momentos uma mesclada prosa-poética sutil, e que por vezes toma um aspecto um tanto obscuro.
     O que chama a atenção são as personagens, miss Willatt (a biografada) e miss Linsett (a biógrafa). Ambas para mim pareceram possuir facetas da própria personalidade da escritora. O comentário sobre o suicídio, que Virginia acabaria por cometer quatro três décadas e meia mais tarde, além da personalidade e reflexões de miss Willatt, ganharam, em retrospecto, importância através dos tempos, na medida em que a própria intimidade de Woolf se tornou pública através de seus diários.
     O conto ainda possui interessantes reflexões sobre o ato da escrita, sobre a liberdade criadora, liberdade tal que só lhe foi permitida quando Virginia, junto com seu marido Leonard Woolf, fundou sua própria editora anos mais tarde, a Hogarth Press.
     Belíssimo!


     Virginia Woolf
     Contos Completos
     Tradução de Leonardo Froés
     Editora Cosac & Naify

    



     
      
   
   

   

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